Todavia, digamo-lo de passagem, nem tudo é ridículo e superficial naquela curiosa época a que fizemos alusão e a que poderíamos chamar a anarquia dos nomes de batismo. Ao lado do elemento romântico, existe o sintoma social. Não é raro hoje em dia que um boieiro se chame Artur, Alfredo ou Afonso, e que um visconde se ainda há viscondes se chame Tomás, Pedro ou Jacques. Esta deslocação que dá ao plebeu o nome elegante e o nome rústico ao aristocrata, não é senão um borbotão de igualdade. Conhece-se nisto como em tudo, a irresistível penetração do novo sopro. Sob esta aparente discordância, existe uma coisa grande e profunda: a revolução francesa.
Para prosperar não basta ser mau. O negócio da estalagem não dava lucro. Graças aos cinquenta e sete francos de Fantine, Thenardier pudera evitar o protesto de uma letra e, por conseguinte, o descrédito da sua assinatura. No mês seguinte, tiveram ainda necessidade de dinheiro; a mulher dirigiu-se a Paris e empenhou no Monte de Piedade o enxoval de Cosette por sessenta francos.
Apenas este dinheiro se consumiu, logo os Thenardier se acostumaram a ver na pobre pequenita unicamente uma criança que tinham em casa por caridade e passaram a tratá-la como tal. Como já não possuía enxoval, vestiram-na de saias e camisas velhas que tinham sido do uso das outras duas pequenas, isto é, de farrapos Não lhe davam para comer senão os sobejos de todas as outras pessoas, alimentação um pouco melhor que a do cão e alguma coisa pior que a do gato. O cão e o gato eram, de resto, os seus comensais habituais; Cosette comia com eles debaixo da mesa, numa escudela de pau, igual à deles.
A mãe, que se tinha fixado, como mais tarde se verá, em Montreuil-sur-mer, escrevia, ou, para melhor dizer, mandava escrever todos os meses, pedindo notícias da sua filhinha. Os Thenardier respondiam invariavelmente: «Cosette passa magnificamente».
Findos os primeiros seis meses, Fantine enviou sete francos para pagamento do sétimo mês e continuou a mandar com a maior exatidão as suas remessas mensais. Não tinha ainda terminado o ano, quando Thenardier disse:
— Ora olhem que grande favor! Que quer ela que se faça com sete francos?
Escreveu pois imediatamente à pobre mãe, exigindo-lhe doze francos. Fantine, persuadida de que sua filha era feliz e passava bem, submeteu-se à exigência e mandou os doze francos.
Certas naturezas não podem amar por um lado sem odiar pelo outro. A Thenardier queria apaixonadamente às suas duas filhas, o que fazia com que detestasse a que lhe era estranha. É triste a ideia de que o amor maternal possa apresentar aspetos repugnantes.
Por mais pequeno que fosse o lugar que Cosette ocupava naquela casa, parecia-lhe um roubo feito aos seus e que a pobre pequenita lhes diminuía o ar que respiravam Esta mulher, como muitas da sua espécie, tinha para prodigalizar em cada dia uma soma de carícias e outra de pancadas e injúrias. Se ela não tivesse Cosette, é certo que suas filhas, apesar de idolatradas, teriam recebido tudo, mas a criança estranha prestava-lhes o serviço de afastar delas e fazer recair sobre si as pancadas que lhes eram destinadas e em troco das quais elas só tinham carícias. Cosette não fazia um movimento que não visse desabar sobre si uma saraivada de castigos violentos e imerecidos.
Doce e frágil criaturinha, que não devia compreender nada deste mundo nem de Deus, sem ser incessantemente punida, repreendida, tratada com a maior rudeza, espancada e vendo a seu lado duas criancinhas como ela, a viver num raio de aurora!
A Thenardier, sendo má para Cosette, fez com que Eponine e Azelma o fossem também, porque as crianças naquela idade são simples cópias da mãe. A diferença é o formato ser mais pequeno.
Assim se passou um ano e depois ainda outro. Entretanto, dizia-se na aldeia:
— Que excelentes pessoas são estes Thenardier. Apesar de não serem ricos sustentam e educam uma pobre criança que foi abandonada em sua casa!
Todos julgavam que a mãe de Cosette a tinha abandonado. Thenardier, contudo, tendo sabido por qualquer obscura via, que a criança provavelmente era bastarda, e que a mãe não o podia confessar, exigiu quinze francos por mês, dizendo que a pequena comia e crescia cada vez mais, ameaçando-a ao mesmo tempo de pô-la fora de casa. «Não pense ela que está a tratar com algum tolo» exclamou ele. «Se se põe a torcer o nariz, mando-lhe a pequena, sem me importar com os seus segredos. Preciso de mais dinheiro!» E a infeliz mãe pagou os quinze francos.
De ano para ano, a criança crescia, crescendo também a sua miséria.
Cosette, enquanto pequena, foi sempre maltratada pelas faltas das suas duas companheiras; apenas começou a desenvolver-se, quer dizer, antes ainda de ter cinco anos, tornou-se a criada da casa.
Com cinco anos, dir-se-á, isso é inverosímil! Infelizmente, é verdade. O sofrimento social começa em qualquer idade. Não vimos ainda há bem pouco o processo de um tal Dumolard, órfão que se tornou bandido, o qual desde a idade de cinco anos, segundo dizem os documentos oficiais, vendo-se só no mundo, «trabalhava para viver, roubando?»
Obrigavam a pobre Cosette a fazer os recados, a varrer os quartos, o pátio e a rua, a lavar a loiça e até a carregar com coisas pesadas. Os Thenardier julgavam-se muito mais autorizados a proceder deste modo, porque a mãe, que continuava a estar em Montreuil-sur-mer, começava a pagar mal, chegando a ficar alguns meses em atraso.
Se a pobre mãe tivesse voltado a Montfermeil no fim destes três anos, não teria decerto reconhecido a filha. Cosette, tão fresca e rosada quando chegou àquela casa, estava agora magra e amarela. O seu aspeto era sempre inquieto Os Thenardier chamavam-lhe sonsa.
A injustiça fizera-a rabugenta e a miséria tornara-a feia. Já não lhe restavam senão os seus belos olhos, que causavam pena, porque, grandes como eram, pareciam conter ainda maior quantidade de tristeza.
Partia o coração ver de inverno aquela pobre criança, que ainda não contava seis anos, envolta em farrapos e tiritando com frio, a varrer a rua, antes de amanhecer, com uma enorme vassoura nas mãozinhas arroxeadas e uma lágrima suspensa dos seus belos olhos rasgados.
A gente das redondezas chamavam-lhe a Cotovia. O povo, propenso às figuras, comprazera-se de assim denominar aquela criaturinha, pouco mais gorda do que um passarinho, trémula e assustada, sendo a primeira que de manhã se erguia, não só em casa, mas em toda a aldeia, e sempre antes de ser dia já na rua ou nos campos.
Somente a pobre Cotovia não cantava nunca.
LIVRO QUINTO — A DESCIDA
I — História de um melhoramento no fabrico dos vidrilhos pretos
Entretanto, o que fora feito da mãe, que no dizer dos habitantes de Montfermeil, abandonara a filha? Onde estava e o que fazia? Depois de ter deixado a criança entregue aos mercenários cuidados dos Thenardier, continuava o seu caminho e chegara a Montreuil-sur-mer. Passava-se isto, como estarão lembrados, em 1818.
Fantine tinha deixado a sua província havia dez anos. Montreuil-sur-mer mudara de aspeto. Enquanto Fantine descia lentamente de miséria em miséria, fora prosperando a sua terra natal.
Havia dois anos que se tinha realizado um desses factos industriais que constituem os grandes acontecimentos das terras pequenas.
Este pormenor é importante e por isso julgamos útil desenvolvê-lo, quase diríamos, sublinhá-lo.
Desde tempos remotíssimos que Montreuil-sur-mer tinha por indústria a imitação do azeviche inglês e dos vidrilhos pretos da Alemanha, indústria que vegetara sempre, sem tomar desenvolvimento em grande escala, por causa da carestia das matérias-primas, que reagiam sobre a mão de obra Na ocasião em que Fantine voltara a Montreuil-sur-Mer, tinha-se operado uma transformação inaudita na produção dos artigos pretos.
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