1 ...8 9 10 12 13 14 ...38 — Guarde-se bem isso, rapaz! — atalhou Tréville. — Pelo contrário, se o vir aproximar-se por um lado da rua passe para o outro! Não esbarre com semelhante rochedo, ele o quebraria como se fosse de vidro.
— Isso não impede que se alguma vez o encontrar!... — respondeu D’Artagnan.
— Entretanto, não o procure, é o conselho que dou — insistiu o Sr. de Tréville.
De súbito, Tréville deteve-se, assaltado por uma desconfiança súbita. Aquele grande ódio que manifestava tão desassombradamente o jovem viajante pelo homem que — coisa muito pouco verosímil — lhe roubara a carta do pai, esse ódio não esconderia alguma perfídia? Aquele rapaz não seria enviado por Sua Eminência? Não viria armar-lhe uma cilada? Aquele pretenso D’Artagnan não seria um emissário do cardeal que procurasse introduzir-se em sua casa, para, uma vez colocado junto dele, surpreender a sua confiança e perdê-lo mais tarde, como já acontecera milhares de vezes? Olhou D’Artagnan ainda mais fixamente desta segunda vez do que da primeira e ficou mediocremente tranquilizado com o aspecto daquela fisionomia cintilante de espírito astucioso e de humildade afetada.
“Tenho certeza de que é gascão”, pensou, “mas tanto pode sê-lo para o cardeal como para mim. Vou experimentá-lo...”
— Meu amigo — disse lentamente —, desejo, tendo em conta ser filho do meu velho amigo, pois considero verdadeira a história dessa carta perdida, desejo, repito, para compensá-lo da frieza que de início notou no meu acolhimento, revelar-lhe os segredos da nossa política. O rei e o cardeal são os melhores amigos, os seus aparentes desencontros destinam-se apenas a enganar os tolos. Não quero que um compatriota, um belo cavaleiro, um bravo rapaz, nascido para triunfar, caia nesse logro e se deixe ir no bote como um lorpa, a exemplo de tantos outros que têm caído nessa besteira. Tenha sempre presente que sou dedicado a esses dois amos todo-poderosos e que nunca os meus atos terão outro objetivo que não seja o serviço do rei e do Sr. Cardeal, um dos mais ilustres gênios que a França produziu. Agora, rapaz, tome a sua decisão, e se tem, seja por motivos de família, seja por motivos de amizade, seja até por instinto, alguma dessas inimizades contra o cardeal que vemos surgirem entre os gentis-homens, despeça-se de mim e nos separemos. Eu o ajudarei em todas as circunstâncias, mas sem o ligar à minha pessoa. De qualquer modo, espero que a minha franqueza o faça meu amigo, pois é até agora o único jovem a quem falei como acabo de falar.
Entretanto, Tréville dizia para consigo: “Se o cardeal me mandou esta jovem raposa, decerto não se esqueceu — pois sabe até que ponto o detesto — de dizer ao seu espião que a melhor maneira de me fazer a corte era dizer-me o pior possível dele, por isso, apesar dos meus protestos, o astuto compadre vai me responder certamente que abomina Sua Eminência.”
Aconteceu precisamente o contrário do que Tréville esperava; D’Artagnan respondeu com a maior simplicidade:
— Senhor, chego a Paris com intenções muito semelhantes. Meu pai recomendou-me que não sofresse nada a não ser do rei, do Sr. Cardeal e do senhor, que considera as três primeiras personalidades de França.
D’Artagnan juntava o Sr. de Tréville aos outros dois, como se verifica, mas pensava que essa junção não teria qualquer inconveniente.
— Tenho a maior veneração pelo Sr. Cardeal — continuou — e o mais profundo respeito pelos seus atos. Tanto melhor para mim, senhor, se me fala, como diz, com franqueza; porque então me darei a honra de considerar tal semelhança agradável, mas se tivésse tido alguma desconfiança (aliás muito natural), creio que me perderia dizendo a verdade. Tanto pior, se assim acontecesse. No entanto, espero que apesar de tudo não deixe de me estimar, visto ser o que mais desejo no mundo.
O Sr. de Tréville ficou surpreendidíssimo. Tanta perspicácia, tanta franqueza enfim, causa-lhe admiração, mas não afastava inteiramente as suas dúvidas: quanto mais o jovem se revelava superior aos outros jovens, tanto mais temia enganar-se. Contudo, apertou a mão a D’Artagnan e disse-lhe:
— Você é um rapaz honesto, mas neste momento só posso fazer o que o ofereci há pouco. O meu palácio estará sempre aberto. Mais tarde, quando puder procurar-me a qualquer hora e por consequência aproveitar todas as oportunidades, obterei provavelmente o que desejar obter.
— Quer dizer, senhor, que espera que me torne digno disso — respondeu D’Artagnan. — Pois bem, fique tranquilo que não esperará muito tempo — acrescentou com a familiaridade do gascão.
E cumprimentou para se retirar, como se no futuro o resto fosse consigo.
— Espere — atalhou o Sr. de Tréville, detendo-o. — Prometi-lhe uma carta para o diretor da Academia. Você é muito orgulhoso para aceitá-la, meu jovem gentil-homem?
— Não, senhor — respondeu D’Artagnan. — E garanto-lhe que com essa não acontecerá o mesmo que aconteceu com a outra. Eu a guardarei tão bem que chegará, juro, ao seu destino, e ai daquele que tentasse roubá-la!
O Sr. de Tréville sorriu da fanfarronice e, deixando o seu jovem compatriota no vão da janela, onde se encontravam e tinham conversado, foi sentar-se a uma mesa e começou a escrever a carta de recomendação prometida. Entretanto, D’Artagnan, que não tinha nada melhor que fazer, pôs-se a tamborilar uma marcha nas vidraças, olhando os mosqueteiros, que se retiravam um após outro, e seguindo-os com a vista até desaparecerem à esquina da rua.
Depois de escrever a carta, o Sr. de Tréville lacrou-a, levantou-se e aproximou-se do jovem para lhe entregar a carta, mas no preciso momento em que D’Artagnan estendia a mão para a receber, o Sr. de Tréville ficou muito surpreendido ao ver o seu protegido sobressaltar-se, corar de cólera e correr para fora do gabinete gritando:
— Ah, maldito, desta vez não me escapará!
— Quem? — perguntou o Sr. de Tréville.
— O meu ladrão! — respondeu D’Artagnan. — Ah, traidor!
E desapareceu.
— Diabo de louco! — murmurou o Sr. de Tréville. — A não ser — acrescentou — que seja uma maneira hábil de se esgueirar ao ver que falhou o golpe...
CAPÍTULO IV — O OMBRO DE ATHOS, O BOLDRIÉ DE PORTHOS E O LENÇO DE ARAMIS
D’Artagnan, furioso, atravessara a antecâmara em três saltos e corria para a escada, cujos degraus contava descer quatro a quatro, quando, impelido pela corrida, foi chocar de cabeça baixa com um mosqueteiro que saía do gabinete do Sr. de Tréville por uma porta de serviço, mosqueteiro a quem fez soltar um grito, ou antes um berro, ao bater-lhe com a testa no ombro.
— Desculpe-me — disse D’Artagnan, tentando retomar a corrida —, desculpe-me que estou com pressa.
Mal descera, porém, o primeiro degrau quando um punho de ferro o agarrou pelo cinto e o deteve.
— Está com pressa! — gritou o mosqueteiro, pálido como uma mortalha. — E sob esse pretexto me da um encontrão e diz: “Desculpe-me”, e julga que isso basta? De modo nenhum, meu rapaz. Imagina, só porque ouviu o Sr. de Tréville nos falar um pouco bruscamente hoje, que qualquer nos pode tratar como ele nos fala? Está enganados, camarada, não é o Sr. de Tréville.
— Palavra — replicou D’Artagnan, que conheceu Athos, o qual, depois do penso feito pelo médico, voltava para sua casa —, palavra que não fiz de propósito e pedi desculpa. Parece-me portanto que basta. Repito, porém, e desta vez talvez seja muito, palavra de honra, que estou com pressa, com muita pressa. Largue-me, eu lhe suplico, e deixe-me ir aonde tenho de ir.
— Senhor — disse Athos, largando-o —, não é nada delicado. Vê-se bem que vem de longe.
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