Queres dizer capricho e eu creio que essa é a palavra certa. Quem era a amante de Lourenço antes de eu regressar? Porque estou certa de que ele tinha uma?
Tinha. Bartolommea del Nasi. Uma bela rapariga, não muito astuta, mas a família é-o o suficiente por ela. Eles podem achar desagradável o facto de a tua presença ter feito secar a sua fonte de rendimento. Arriscas-te a ficar em perigo.
Não me parece que queiram ficar com um crime na consciência. Mais tarde ou mais cedo, afastar-me-ei de Lourenço. Simplesmente, não o quero ferir.
Sê franca! Nem renunciar ao que encontras junto dele?
É verdade. Gostaria que esta situação se prolongasse mais um pouco. Aliás, pelo que diz, também ele deseja que isto dure muito tempo; propôs-me mandar alguém a Plessis para trazer o meu filho e Léonarde, mas eu ainda não me resolvi a aceitar. Não sei porquê, porque seria no interesse da criança. Educado aqui, receberia, naturalmente, toda a educação necessária para continuar os negócios do meu pai.
Não estás a falar a sério?
Estou. Desde que nasceu que desejo fazer dele um homem igual ao meu pai: corajoso, letrado, humano, generoso e aberto à beleza. Parece-te inverosímil?
É a minha vez de ser franca: sim.
Mas porquê?
Não fui eu que casei com messire de Selongey! Esqueces-te que o teu filho também é dele, que tem um grande nome no seu país, mesmo que pertença a um homem que pagou com o cadafalso a sua fidelidade a uma causa perdida. Não podes fazer dele um burguês florentino...
Não vejo que isso o possa diminuir?
É possível que não, mas ele verá, um dia. Quando for grande fará perguntas às quais terás de responder. E então, quem te diz que ele não preferirá uma vida miserável, uma vida de proscrito de acordo com a escolha do pai, à vida faustosa que tu sonhas para ele, mas na qual não se reconhecerá? Tu foste desenraizada e sabes o que isso custa. Não faças com que o teu filho sofra o mesmo! Educa-o no amor e na recordação do teu marido...
E isso é incompatível com a vida de alta personagem da nossa cidade?
Talvez não, na condição de que não sejas então, e há muito tempo, a amante de Lourenço. Eu sei acrescentou Chiara, sorrindo que parece que te estou a votar a uma austeridade para a qual não foste feita, mas creio que, se tivesse um filho, dedicar-me-ia a ele com alegria...
Sem responder, Fiora passou um braço pelo pescoço da amiga, beijou-a e deixou o seu rosto encostado ao dela, sem se dar conta de que as lágrimas lhe corriam pelas faces.
Não chores disse Chiara. Estou certa que ainda tens belos dias pela frente... E agora, se dormíssemos? A alvorada está a chegar.
Não foi o dia que as acordou, antes um verdadeiro uivo lançado por Colomba. Num abrir e fechar de olhos, viram-se de pés nus e em camisa nos degraus de mármore da escadaria, correndo na direcção da grande porta do palácio, aberta, na entrada da qual estava Colomba desmaiada. Uma criada dava-lhe pancadinhas nas faces sem convicção, ao mesmo tempo que, no exterior, um criado erguia o punho e lançava injúrias. Um jovem elegante juntara a sua voz à do servo e de Lodovico Albizzi que, em roupão e com o gato debaixo do braço, batia com os pés no chão e lançava gritos inarticulados.
Ao juntarem-se-lhes, as duas jovens viram um bando de rapazes que se afastava dançando e arrastando uma coisa qualquer na ponta de uma corda.
O que é que se passa, meu tio? perguntou Chiara, inquieta ao ver o ancião vermelho de furor.
Ah, é o velho diabo do Jacopo Pazzi! Continuam a arrastá-lo pelas ruas! Nunca vi um morto mexer-se tanto...
Fiora soube o que se passara pela boca de Colomba, enquanto a obrigava a beber umas gotas de aguardente. Enquanto velava pela preparação da primeira refeição, a governanta de Chiara ouvira, na rua, um bando de rapazes a cantar. Um instante depois, a aldraba da porta era vigorosamente agitada. Colomba fora abrir e fora então que lançara o grito que acordara uma parte da casa: preso na corrente da campainha, balouçava um cadáver meio decomposto, ao mesmo tempo que, em redor, os rapazes riam e gritavam:
Bate à porta, ser Jacopo! Bate à porta! Abri a messer Jacopo di Pazzi!
A chegada intempestiva do elegante jovem a cavalo pô-los em fuga. Apressaram-se a retirar o seu trofeu odioso e levaram-no, arrastando-o, mas o odor pavoroso parecia ter ficado colado às pedras da soleira e Fiora, por sua vez, sentiu-se empalidecer:
Não poderemos levar donna Colomba para dentro? perguntou ela, ao mesmo tempo que Chiara se esforçava por fazer com que o seu tio entrasse também, obstinado em continuar a gesticular e em chamar a Milícia.
Evidentemente exclamou o jovem, que puxou o criado por um dos braços. É para já!
Fiora afastou-se e os dois, entre eles, transportaram Colomba, cujas pernas trémulas pareciam incapazes, para o interior da casa. Mas, ao erguê-la, o seu olhar encontrou o da jovem e não conseguiu suster a doente:
Madona Santíssima! És tu?... Tinham-me dito que tinhas regressado, mas não acreditei.
Porquê? Pensavas que tinha morrido? Seria, evidentemente, mais cómodo para a tua tranquilidade de espírito.
O olhar irónico de Fiora media, com mais divertimento do que rancor, o seu antigo apaixonado. Luca Tornabuoni continuava tão belo como nos tempos em que lutava ardentemente pela mão de Fiora; talvez estivesse, ainda, mais belo, porque, em três anos, perdera aquele aspecto um pouco frágil da juventude e, ao mesmo tempo, o seu lado ternurento. No entanto, Fiora sabia da cobardia que se escondia por trás daquele rosto cujo perfil era digno de ser esculpido em bronze. No dia da catástrofe em que mergulhara a sua vida, Luca apressara-se a desaparecer no meio da multidão sem tentar socorrer aquela de quem, entretanto, se dizia tão apaixonado.
Então, que esperais? exclamou Albizzi, que se decidira a entrar. Um pouco de nervo, que diabo! Ainda deixais cair a pobre mulher. E vós, as raparigas, que estais aí a fazer? acrescentou ele na direcção da sobrinha e de Fiora. Talvez seja distraído, mas não ao ponto de não reparar que estais ambas em camisa! Em camisa! E na rua! Toca a andar! Para dentro!
De mãos dadas, as duas jovens voltaram a subir a escadaria a correr e a rir, ao mesmo tempo que Luca gritava:
Dá-me autorização para te vir ver, Fiora! Tenho de te falar! Diz-me que posso vir!
Inclinando-se no corrimão, a interpelada lançou:
Eu não estou em minha casa. Além disso, não me apetece ver-te!
Aquela declaração definitiva não impediu Luca de regressar durante o dia, mas Fiora recusou recebê-lo, assim como no dia seguinte. A jovem procurou compreender por que razão aquele rapaz, em tempos seu cavaleiro ardente e cujas homenagens ela aceitava porque era belo e decorativo, mas sem lhe retribuir os sentimentos, desejava tanto aproximar-se de novo. Ainda por cima porque, segundo Chiara, era casado e pai de uma criança.
Se começo a ter relações com todos os homens casados da cidade, a minha reputação desaparece num instante confiou ela a Chiara. Além disso, não tenho vontade nenhuma de lhe falar.
O bom tempo regressara e instalava-se para satisfação geral, se bem que as pessoas sérias se recusassem a ver uma relação entre os caprichos do céu e os despojos mortais de Jacopo Pazzi. Que, aliás, abandonara Florença definitivamente pela via do rio, para onde o magistrado de justiça o mandara atirar do alto da ponte Rubaconte.
Nesse dia, as duas amigas, que saíam de boa vontade para as ruas de uma Florença enfim tranquilizada, decidiram subir a San Miniato. O tempo dos espinheiros-alvar e das violetas já tinha passado, mas Fiora e Chiara tinham a mesma predilecção por aquele local encantador de onde se desfrutava, sobre Florença, a mais bela vista da região. As chuvadas recentes não tinham causado grandes estragos em redor da velha igreja e do velho palácio dos bispos. Ciprestes orgulhosos enegreciam o alto da colina, qual barreira erguida contra o assalto da vegetação que três dias de sol tinham tornado exuberante.
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