Porquê?
Porque eu devo partir em breve. Tenho, em França, um filho de nove meses.
Tu tens um filho? Oh, meu Deus! Que sorte! Um filho! Eu gostava tanto de ter um filho!
Mas... tu não és casada?
Não. Bernardo Davanzati, com quem eu devia casar, morreu de peste em Roma, o ano passado.
Oh, tenho tanta pena!
Não tenhas! Eu não lhe tinha amor. Porém, representava a minha única hipótese de não ficar solteirona, porque o meu dote não é grande coisa.
A despeito da serenidade do tom, Fiora juraria ter visto uma nuvem passar pelo rosto encantador da sua amiga e depositou-lhe um beijo leve na face.
Perdoa-me! disse ela.
Esqueçamos isso! Tens muito que me contar, sem dúvida? Por que não vens passar alguns dias a nossa casa? O meu tio gostaria muito de te ver de novo. E depois... para dizer a verdade, foi com esse fim que te mandei espiar concluiu Chiara, sorrindo.
Espiar?
Não tenhas medo! Foi uma coisa inocente. Eu sabia que, mais tarde ou mais cedo, virias aqui rezar e assim que soube do teu regresso perguntei por ti ao sacristão, mas ele ainda não te tinha visto. Então, paguei-lhe para que me prevenisse se tu aparecesses... e foi o que ele fez. Mais nada! E agora, levo-te comigo?
Fiora não hesitou. Uma curta estadia em casa de Chiara fá-la-ia recordar os dias felizes de outros tempos. Além disso, sentia-se encantada por ter a oportunidade de afirmar uma certa independência face a Lourenço. Na noite anterior ele mostrara-se distraído e, assim, um pouco menos ardente. Ao ir-se embora, explicara aquela ligeira desatenção, anunciando que não iria ter com ela na noite seguinte: a chuva incessante provocara um deslizamento de terras no vale do Mugello e pusera a descoberto um ombro de mármore branco que devia pertencer, sem dúvida, a uma estátua antiga.
Preveniram-me ontem à noite disse Lourenço, cujos olhos escuros brilhavam de excitação e prometi ir lá esta manhã. E não voltarei a sair de lá, compreendes, antes de o conjunto ser totalmente descoberto.
Compreender? Seria preciso não conhecer Lourenço, a sua busca incessante da beleza, da raridade e o seu amor pelos vestígios dos tempos antigos, para não compreender. Demétrios tinha razão ao comparar Fiora com a flor preciosa roubada do jardim do Magnífico antes de ele a ter podido cheirar, e regressada por uma espécie de milagre. Não era o amor que unia os dois amantes, antes um desejo violento, exaltado pelo orgulho de possuir, um, uma mulher de uma beleza excepcional durante muito tempo cobiçada, a outra um homem prodigioso, que qualquer rainha gostaria de ver a seus pés. Ambos amavam o amor, e os abraços que uniam os seus corpos podiam atingir a perfeição de um poema, mas o coração de Fiora não batia apressadamente à aproximação do Magnífico, mesmo quando o seu corpo se abria às suas carícias na expectativa deliciosa de uma realização que a faria atingir o cúmulo do prazer. Quanto a Lourenço, como conhecer os pensamentos que se agitavam no interior da sua grande fronte abaulada?
Ele escrevia poemas dedicados a Fiora; enchia-a de presentes e divertia-se a ornamentá-la, mas raramente ficava satisfeito com as jóias sumptuosas nas quais se esforçava por engastar a sua beleza, porque ela triunfava sempre. Uma noite, não aparecera só: Sandro Botticelli, com uma cartolina debaixo do braço, acompanhava-o e Fiora, corada de confusão, teve de posar para aquele jovem pintor, nua e de pé sobre um pequeno tamborete, em redor do qual Lourenço acendera umas velas para que a luz dourasse a sua pele e a fizesse brilhar com mais intensidade. Depois, mal o pintor se eclipsara, amara-a com um ardor esfomeado que assustara, até, um pouco a jovem. E como ela lho dissesse docemente, ele suspirara:
Que homem não sonhou em possuir uma deusa na esperança insensata de conseguir chegar à fonte da sua beleza e conseguir roubar-lhe uma parcela? Infelizmente, Vénus não é generosa e guarda tudo para ela.
Não me digas que o lamentas? Tu não precisas de ser belo. O que tu possuis é muito mais poderoso. Elas são muitas, não são, as que desejam atrair o teu olhar?
Porque eu sou o senhor? Mas, se eu não passasse de um moço de fretes, ou de um barqueiro do Arno, quantas delas me concederiam a sua atenção?
Mais do que pensas. Ou então, seria preciso não serem mulheres.
Ele agradecera-lhe com um beijo e acrescentara:
No entanto, sei que a sede de beleza que tenho na alma nunca se extinguirá.
Agora, a sua busca incessante levara-o até uma estátua e se Fiora não se sentira surpreendida, sentira-se, mesmo assim, um pouco vexada. O convite de Chiara vinha mesmo a propósito. A jovem começava a sentir a necessidade de colocar uma certa distância entre si e aquela aventura apaixonante que a invadia e lhe ocupava demasiado o espírito; e que esperava o momento certo, talvez, para se instalar no seu coração. Fiora não queria ligar-se a Lourenço: sabia que sofreria, mais tarde ou mais cedo. Além disso, a sua vida, a sua verdadeira vida, esperava-a algures, junto do seu pequeno Philippe, e o seu dever era fazer dele um homem. E isso não era compatível com a existência de favorita oficial que vislumbrava no horizonte.
De braço dado, as duas jovens amigas saíram da igreja com Colomba nos seus calcanhares. Fiora procurou Esteban com os olhos, que fora fazer umas compras no bairro e que deveria regressar para a esperar. Não o vendo, pensou, com um pouco de aborrecimento, que devia ter ficado numa das suas amadas tabernas. Não devia estar longe, porque as duas mulas continuavam presas no telheiro onde ele as tinha abrigado. Fiora não queria ir à procura dele, mas era preciso dar-lhe a saber que ia para casa dos Albizzi em vez de regressar a Fiesole.
A chuva cessara, mas as nuvens que sobrevoavam a rua estreita prometiam outro aguaceiro e seria uma pena não aproveitar aquela aberta:
Talvez possamos dizer uma palavra aos rapazes que trabalham aqui? segredou Colomba, apontando para uma casa situada em frente do adro da igreja e onde se viam, por uma janela aberta, as cabeças dos empregados inclinadas sobre os grandes registos. Era o palácio em forma de torre, sede da Arte della Lana a arte da lã cujo prior, messer Buonaccòrsi, era amigo dos Albizzi.
As duas jovens iam, em consequência, subir os degraus que iam dar à porta encimada pelas armas da corporação, quando viram chegar Esteban. O servo vinha dos entrepostos de tinturaria, que eram junto d’Or San Michele. Uma ruela, pouco mais larga do que uma passagem estreita separava ambos, escavada ao meio por um ribeiro por onde corriam os restos dos banhos de cor das meadas de lã penduradas de travessas e dentro de uma espécie de jaulas providas de tecto. O ribeiro era de uma cor violeta, encarnada ou azul-escura, segundo os girassóis, a ruiva-dos-tintureiros ou o pastel-dos-tintureiros utilizados pelos operários. Naquele dia era de um vermelho-profundo de rubi quando o castelhano o atravessou de um salto para se reunir às duas damas.
Perdoai-me! disse ele e o seu rosto perturbado estava branco como a cal. Fiz-vos esperar e sinto-me desolado.
Que se passa, Esteban? perguntou Fiora. Sentis-vos mal?
Não... não, mas acabo de ver uma coisa tão terrível que voltei atrás para ver melhor. Ouvis estes gritos?
Com efeito, chegavam por cima dos telhados, e ao longo das ruas, clamores, indistintos mas ferozes: ódio e uma alegria selvagem, transformados em risos dementes. As três mulheres persignaram-se.
Dir-se-ia que o tumulto vem da Senhoria! disse Chiara. Terão encontrado mais gente para enforcar?
Não. Encontraram melhor do que isso!
E Esteban contou como um bando de homens e de mulheres, chegado do campo na sua maior parte, acabava de violar, na igreja da Santa Croce, o túmulo de Jacopo Pazzi, tirando de lá o corpo do ancião que se dizia ter blasfemado, antes de ser enforcado, e ter vendido a alma ao diabo. Aquela gente considerava um sacrilégio terem confiado à terra cristã os despojos de um apoiante de Satanás e atribuía a isso as violentas intempéries que tinham desabado sobre a região de Florença.
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