Rahvin gritou em meio à chama — era só uma — e afastou-se cambaleando, voltando para onde o corredor virava um corredor colunado. Um piscar de olhos, menos, enquanto ela ainda estava encolhida, e ele ficou de pé, dentro da chama, mas cercado de ar puro. Cada nesga de saidar que ela era capaz de canalizar estava indo para aquele inferno, mas Rahvin conseguia contê-lo. Nynaeve o via através do fogo. Tudo tinha uma aparência avermelhada, mas ela via. Exalava fumaça do casaco chamuscado do homem. Seu rosto era uma ruína causticada, um dos olhos de um branco leitoso. Mas os dois olhos exalavam malevolência quando ele os virou na direção dela.
Nenhuma emoção lhe chegava por meio da correia a’dam , apenas um embotamento pesado como chumbo. O estômago de Nynaeve se contraiu. Moghedien desistira. Desistira porque a morte estava ali para ambas.
O fogo irrompeu pelas treliças entalhadas acima de Rand, e as labaredas preencheram cada fenda, dançando em direção à colunata. Isso fez a luta dentro dele parar de forma abrupta. Rand voltou a ser ele mesmo tão de repente que foi quase um choque. Estivera canalizando saidin feito um desesperado, tentando se agarrar ao pouco que fosse. Então saidin veio em uma avalanche de fogo e gelo que fez seus joelhos cederem, fez o Vazio estremecer com uma dor que o picotava.
E Rahvin cambaleou de volta à colunata, seu rosto virado para algo lá dentro. O homem estava cercado de fogo, mas, de alguma forma, permanecia de pé como se não fosse afetado. Entretanto, se agora não estava sendo atingido, não fora o caso antes. Apenas o tamanho do vulto, a impossibilidade de ser outra pessoa, indicavam a Rand que se tratava dele. O Abandonado era uma imagem carbonizada de carne vermelha em frangalhos que teria exaurido qualquer Curandeira. A agonia que ele sentia devia ser incalculável. Exceto pelo fato de que Rahvin estaria envolto pelo Vazio, mesmo queimado daquele jeito, enrolado em uma vacuidade em que a dor corpórea era distante e saidin estava à mão.
Saidin ferveu dentro de Rand, e ele soltou tudo. Não para Curar.
— Rahvin! — gritou, e o fogo devastador saiu voando de suas mãos, uma luz derretida mais espessa que um homem, impulsionada por todo o Poder que ele era capaz de canalizar.
Quando atingiu o Abandonado, Rahvin deixou de existir. Os Cães das Trevas de Rhuidean haviam se tornado poeira antes de desaparecer, qualquer tipo de vida que tivessem pelejara para continuar existindo, ou fora o Padrão lutando para se manter, mesmo no caso daquelas criaturas. Mas Rahvin simplesmente… não existia mais.
Rand deixou o fogo devastador morrer e largou um pouco de saidin . Piscando para afastar a imagem residual roxa, levantou os olhos para o enorme buraco na balaustrada de mármore, os vestígios de uma coluna feito um dente canino acima dela, e olhou para um buraco idêntico no teto do Palácio. Não tremeluziam, como se o que ele fizera fosse forte demais até para aquele lugar ser capaz de consertar. Depois de tanta coisa, quase parecia muito fácil. Talvez houvesse algo lá em cima para convencê-lo de que Rahvin estava mesmo morto. Rand correu até uma porta.
Nynaeve tentou desesperadamente inflamar a chama em torno de Rahvin mais uma vez. Pensou que deveria ter usado relâmpagos. Ela ia morrer. Aqueles olhos terríveis haviam se fixado em Moghedien, não nela, mas ela também ia morrer.
O fogo líquido cortou o ar até a colunata, tão quente que fez o fogo que Nynaeve criara parecer frio. O choque a fez soltar a tessitura, e ela ergueu uma das mãos para proteger o rosto, mas, antes que pudesse completar o gesto, o fogo líquido desaparecera. Assim como Rahvin. Ela não acreditava que ele tivesse escapado. Houvera um instante, tão breve que podia quase tê-lo imaginado, em que aquela barra branca encostou nele e o fez virar… névoa. Só um instante. Ela poderia ter imaginado. Mas achava que não. Respirou fundo, trêmula.
Moghedien tinha o rosto enterrado nas mãos, chorando e tremendo. A única emoção que Nynaeve sentia através do a’dam era um alívio tão poderoso que suprimia qualquer outra coisa.
Botas apressadas ecoaram nos degraus abaixo.
Nynaeve girou e deu um passo à frente em direção à escada em caracol. Ficou surpresa ao se dar conta de que estava sorvendo saidar profundamente, mantendo-se a postos.
Sua surpresa se dissipou quando Rand apareceu no topo da escada. Ele estava diferente. Os traços eram os mesmos, mas seu rosto estava endurecido. Os olhos, de um azul gélido. Os rasgões ensanguentados no casaco e nas calças, além do sangue no rosto, pareciam combinar com aquela expressão.
Com tal aparência, Nynaeve não se surpreenderia se ele matasse Moghedien ali mesmo, assim que descobrisse quem ela era. Nynaeve ainda via serventia na Abandonada. Rand reconheceria um a’dam . Sem pensar duas vezes, ela o modificou, deixou a corrente desaparecer e manteve apenas o bracelete de prata no pulso e a coleira em Moghedien. Houve um momento de pânico quando ela compreendeu o que tinha feito, e então um suspiro tão logo percebeu que ainda sentia a outra mulher. Tudo funcionava exatamente como Elayne dissera. Talvez Rand não tivesse visto. Nynaeve estava entre ele e Moghedien, e a corrente estivera atrás dela.
Ele mal olhou para Moghedien.
— Fiquei pensando naquelas chamas enquanto subia. Pensei que podia ter sido você ou… Que lugar é este? É aqui que você se encontra com Egwene?
Erguendo os olhos para ele, Nynaeve tentou não engolir em seco. Aquele rosto era tão frio.
— Rand, as Sábias dizem que o que você fez, o que está fazendo, é perigoso e até mau. Elas afirmam que você perde uma parte de si mesmo quando vem para cá em carne e osso, uma parte do que o torna humano.
— As Sábias entendem de tudo? — Ele passou por ela e encarou a colunata. — Eu pensava que as Aes Sedai entendiam de tudo. Não importa. Não sei a dose de humanidade que o Dragão Renascido pode se permitir ter.
— Rand, eu… — Ela não sabia o que dizer. — Venha, me deixe pelo menos Curá-lo.
Ele ficou parado para permitir que Nynaeve erguesse as mãos e lhe segurasse a cabeça. Ela teve que suprimir um estremecimento. As feridas recentes dele não eram graves, apenas numerosas — não sabia o que poderia tê-lo mordido, mas tinha certeza de que a maioria daqueles machucados eram mordidas —, mas a ferida antiga, a ferida semicicatrizada que nunca sarava na lateral do corpo dele, aquela era um poço de escuridão, um poço cheio de como ela pensava que a mácula de saidin devia ser. Nynaeve canalizou os fluxos complexos que compunham a Cura, Ar e Água, Espírito, e até Fogo e Terra em pequenas quantidades. Rand não gritou e nem se debateu. Nem piscou. Ele estremeceu. Só isso. Então segurou-a pelos pulsos e afastou as mãos de seu rosto. Nynaeve não relutou. As feridas recentes haviam desaparecido, cada mordida, arranhão ou machucado, mas não a ferida antiga. Nada mudara quanto a ela. Qualquer coisa que não fosse a morte deveria poder ser Curada, inclusive aquilo. Qualquer coisa!
— Ele morreu? — perguntou ele com tranquilidade. — Você o viu morrer?
— Morreu, Rand. Eu vi.
Ele assentiu.
— Mas ainda tem outros, não tem? Outros… Escolhidos.
Nynaeve sentiu a punhalada de medo vinda de Moghedien, mas não olhou para trás.
— Rand, você precisa ir. Rahvin está morto, e este lugar é perigoso para você deste jeito. Precisa ir e nunca mais voltar em carne e osso para cá.
— Eu já vou.
Ele não fez nada que ela pudesse ver ou sentir — claro que não, ela não tinha como —, mas, por um momento, achou que o corredor atrás dele tinha… se transformado, de alguma forma. Mas não parecia diferente em nada. Exceto… Ela piscou. Não havia mais nenhuma coluna desabada na colunata atrás dele, nenhum buraco no corrimão de pedra.
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