— Eles nunca nos deixariam sair daqui. Nunca.
— Talvez não. Mas, mesmo assim, vale a pena tentar. Tu tens o saber, eu tenho a perícia e os dois juntos temos…
Ele fez uma pausa e a rapariga disse:
— O Anel de Erreth-Akbe.
— Sim, também. Mas também pensei numa outra coisa que há entre nós. Chama-lhe confiança… É um dos nomes que tem. E é uma coisa muito grande. Embora cada um de nós, por si, seja fraco, tendo isso, essa confiança, somos fortes, mais fortes que os Poderes da Treva.
Os olhos brilhavam-lhe, claros, na cara sulcada de cicatrizes. E continuou:
— Escuta, Tenar! Vim até aqui como um ladrão, um inimigo, armado contra ti. E tu foste clemente para comigo e confiaste em mim. Mas também eu confiei em ti desde o primeiro momento em que vi o teu rosto, apenas por um momento na caverna sob os Túmulos, belo na escuridão. Já deste provas da confiança que tens em mim, mas eu ainda não retribuí. Dar-te-ei o que tenho para dar. O meu nome-verdadeiro é Gued. E isto é teu para que o guardes contigo.
Erguera-se e estendia-lhe um semicírculo de prata, perfurado com vários orifícios e cinzelado.
— Que se reúnam as partes do anel — disse ele.
A rapariga recebeu a metade da mão de Gued. Retirou do pescoço a corrente de prata de onde pendia a outra metade e soltou-a. Colocou as duas metades na palma da mão, com as arestas quebradas a tocarem-se, e o anel parecia inteiro.
Ela não ergueu o rosto.
— Irei contigo — disse.
Ao ouvir aquelas palavras, o homem chamado Gued pôs a mão sobre a dela, a que segurava o talismã quebrado. Sobressaltada, a rapariga ergueu os olhos e viu-o transbordando de vida e glória, sorrindo. Tomou-a uma consternação, um receio dele. Mas o feiticeiro disse:
— Libertaste-nos a ambos. Sozinho, ninguém conquista a liberdade. Anda. Não percamos tempo, enquanto ainda tivermos tempo! Mostra-me outra vez, só por um momento.
A rapariga fechara os dedos sobre os dois pedaços de prata mas, ao pedido dele, voltou a abrir a mão e a estendê-la, ainda com as arestas quebradas a tocarem-se.
Ele não pegou nos pedaços, limitando-se a pôr os dedos sobre eles. Disse duas palavras que ela não entendeu e, subitamente, o suor brotou-lhe do rosto. De imediato, a rapariga sentiu na mão um ligeiro e estranho tremor, como se um animalzinho ali adormecido se movesse. Gued suspirou. A sua postura tensa descontraiu-se e ele limpou a fronte.
— Pronto — disse. E, pegando no Anel de Erreth-Akbe, fê-lo deslizar sobre os dedos da mão direita da rapariga, com alguma estreiteza pela própria mão e logo subindo, a abraçar o pulso.
— Pronto! — repetiu, olhando o anel com satisfação. — Serve-te. Deve ser uma pulseira de mulher, ou de criança.
— Irá agüentar? — murmurou ela, nervosamente, apalpando a tira de prata que deslizava, fria e delicada, no seu braço delgado.
— Vai, sim. Eu não podia lançar uma simples encantamento de consertar sobre o Anel de Erreth-Akbe, como uma bruxa de aldeia a remendar uma chaleira. Tive de usar uma encantamento de configurar para o deixar inteiro. E agora está intacto como se nunca tivesse sido quebrado. Tenar, temos de ir. Eu levo o saco e o frasco. Põe o teu manto. Falta mais alguma coisa?
Estava ela já a remexer na porta, para a abrir, quando ele disse:
— Quem me dera ter o meu bordão.
Ao que ela retorquiu, sempre num murmúrio:
— Está mesmo aí, fora da porta. Eu trouxe-o.
— E porque foi que o trouxeste? — inquiriu ele com curiosidade.
— Tinha pensado em… em levar-te até à porta. Em deixar-te partir.
— Essa era uma escolha que não te cabia. Podias manter-me escravo e ser uma escrava. Ou libertares-me e ficares livre comigo. Anda, pequenina, toma coragem, dá volta à chave.
Ela fez rodar a chave com o seu dragão esculpido e abriu a porta para o corredor baixo e negro. Saiu da Sala do Tesouro dos Túmulos com o anel de Erreth-Akbe a envolver-lhe o braço e o homem seguiu-a.
Havia uma surda vibração, algo que não chegava a ser ruído, na rocha das paredes, chão, abóbada. Era como um trovejar muito ao longe, como algo enorme a cair a uma grande distância.
O cabelo da rapariga pôs-se em pé e, sem parar para pensar, ela soprou a vela da lanterna de estanho. Ouviu, por trás de si, o homem a movimentar-se. A sua voz calma disse, tão perto que a respiração lhe agitou o cabelo:
— Deixa a lanterna. Eu posso fazer luz se for necessário. Que horas são lá fora?
— Já passava muito da meia-noite quando vim.
— Então temos de seguir.
Mas não se moveu e a rapariga percebeu que tinha de o guiar. Só ela conhecia o caminho de saída do Labirinto e ele estava à espera para a seguir. Começou a caminhar, vergando o dorso porque ali o túnel era muito baixo, mas mantendo um andamento bastante rápido. De passagens invisíveis que lhes atravessavam o caminho vinha um sopro frio e um odor penetrante, bafento, o cheiro sem vida do enorme vácuo abaixo deles. Quando a passagem se tornou um pouco mais alta, permitindo-lhe endireitar-se, a rapariga passou a andar mais devagar, contando os passos que os aproximavam do poço. Pisando levemente, sensível a todos os movimentos dela, Gued seguia-a a pouca distância. E, no instante em que ela estacou, fez o mesmo.
— Aqui está o poço — sussurrou a rapariga. — Não consigo encontrar a beira. Não, aqui está. Tem cuidado. Tenho a impressão de que as pedras se estão a soltar… Não, não, espera. Estão mesmo soltas…
Recuou para terreno firme, ao sentir as pedras tremerem-lhe debaixo dos pés. O homem pegou-lhe no braço e segurou-a. O coração batia fortemente.
— A beira não está segura. As pedras estão a cair.
— Vou fazer um pouco de luz para as ver. Talvez consiga repô-las com a palavra certa. Está tudo bem, pequenina.
Ela pensou como era estranho que ele lhe chamasse o que Manane sempre lhe chamara. E, no momento em que ele fazia acender-se um leve clarão na extremidade do bordão, como a fosforescência em madeira apodrecida ou uma estrela por trás do nevoeiro, e avançou um passo sobre a estreita passagem ao lado do abismo negro, ela viu um vulto indistinto no negrume para além dele e nesse vulto reconheceu Manane. Mas a voz ficou-lhe presa na garganta como num nó corredio, não conseguiu soltar o mínimo grito.
Quando Manane estendeu o braço para o empurrar do apoio vacilante para o poço a seu lado, Gued ergueu os olhos, viu-o e, com um grito de surpresa ou raiva, vibrou-lhe uma pancada com o bordão. Ao som do grito, a luz alteou-se, branca e intolerável, em pleno rosto do eunuco. Manane ergueu uma das suas enormes mãos para defender os olhos, tentou desesperadamente agarrar Gued, falhou, caiu.
Não soltou grito algum ao cair. Nenhum som se ergueu do negrume do poço, nenhum som do seu corpo a embater no fundo, nenhum som da sua morte, absolutamente nenhum.
Perigosamente agarrados à beira do poço, ambos de joelhos sobre o abismo quais estátuas de gelo, Gued e Tenar não se moveram. Escutavam. Nada ouviram.
A luz voltara a diminuir, de novo tornada um fogo-fátuo acinzentado, no limite do visível.
— Vem! — disse Gued, estendendo-lhe a mão. Ela tomou-a e, com três corajosas passadas, ele fê-la atravessar, logo apagando a luz. Uma vez mais, a rapariga tomou a dianteira para indicar o caminho. Estava como que entorpecida e não conseguiu pensar em nada durante algum tempo. E depois o que pensou foi, será para a direita ou para a esquerda?
Estacou.
Parando alguns passos atrás dela, Gued perguntou suavemente:
— O que foi?
— Estou perdida. Faz a luz.
— Perdida?
— Perdi… perdi a conta das voltas.
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