O salpico de ouro derivou para ocidente, em direção às montanhas, até ficar fora de vista. O Sol nascente debruava de luz os beirais da Casa Pequena. Lá em baixo, nas encostas, tiniam os badalos das ovelhas. Os cheiros de lenha a queimar e das papas de trigo, vindos das chaminés da cozinha, eram trazidos pelo vento fresco e agradável.
— Tenho tanta fome… Como é que ele sabia? Como foi que soube o meu nome?… Ah, tenho de ir comer. A fome que eu tenho…
Puxou o capuz para cima e correu para o pequeno-almoço.
A comida, depois de três dias de quase jejum, fê-la sentir sólida, deu-lhe lastro. Já não se sentia tão bravia, tão jovial e assustada. Sentiu-se perfeitamente capaz de lidar com Kossil, depois do pequeno-almoço.
Aproximou-se da alta e volumosa figura que saía da sala de jantar da Casa Grande e disse em voz natural:
— Já me ocupei do ladrão… Que belo dia que está!
Os cinzentos olhos frios fitaram-na de lado, das profundezas do capuz negro.
— Pensei que a Sacerdotisa se devia abster de tomar alimento durante os três dias a seguir a um sacrifício humano.
Aquilo era verdade. Arha esquecera-o e o seu rosto mostrou que o esquecera.
— Ainda não está morto — disse por fim, tentando manter o tom de indiferença que tão fácil lhe fora imitar um momento antes. — Está enterrado vivo. Debaixo dos Túmulos. Num caixão. Terá algum ar, porque o caixão não foi selado e é de madeira. Virá muito lentamente, a morte. Quando souber que está morto, então começarei o jejum.
— Como vais saber?
Desorientada, Arha voltou a hesitar.
— Saberei. Os… Os meus Senhores dir-me-ão.
— Estou a ver. E onde é a cova?
— No Subtúmulo. Dei ordem a Manane que a abrisse por baixo da Pedra Macia.
Ela não devia responder tão depressa, nem naquele tom idiota, apaziguador. Com Kossil, tinha de manter a sua dignidade.
— Vivo e num caixão de madeira. É coisa arriscada com um bruxo, senhora. Lembraste-te de lhe tapar a boca para ele não poder recitar encantamentos? Ficou com as mãos atadas? Eles são capazes de tecer feitiços só com o mover de um dedo, mesmo quando lhes cortaram a língua.
— A bruxaria dele não é nada, são só truques — retrucou a rapariga, erguendo a voz. — Está enterrado e os meus Senhores esperam pela sua alma. E o resto não é da tua conta, sacerdotisa!
Desta vez fora demasiado longe. Outros podiam ouvi-la. Penthé e um par de outras raparigas, Duby e a sacerdotisa Mebbeth, estavam todos a uma distância a que podiam escutar. As raparigas eram todas ouvidos e Kossil estava ciente disso.
— Tudo o que aqui acontece é da minha conta, senhora. Tudo o que acontece neste reino é da conta do Rei-Deus, o Homem Imortal a cujo serviço estou. Mesmo nos lugares subterrâneos e nos corações dos humanos ele procura e vê, e ninguém poderá vedar-lhe a entrada!
— Eu vedá-la-ei. Nos Túmulos ninguém entra se Aqueles-que-não-têm-Nome o proibirem. Existiam antes do teu Rei-Deus e hão de existir depois dele. Fala deles com suavidade, sacerdotisa. Não chames sobre ti a sua vingança, ou surgirão nos teus sonhos, entrarão nos recantos sombrios da tua mente e enlouquecerás.
Os olhos da rapariga flamejavam. O rosto de Kossil estava oculto, recolhido para dentro do capuz negro. Penthé e as outras observavam, temerosas e cativadas.
— São velhos — soou a voz de Kossil, não alta, antes como um sibilante fio de som a desprender-se de dentro do capuz. — São velhos. O seu culto foi esquecido, salvo num único lugar. O seu poder desvaneceu-se. São apenas sombras. Já não detêm poder algum. Não tentes atemorizar-me, ó Devorada. Tu és a Primeira Sacerdotisa. Não significa isso também que és a última?… Não consegues iludir-me. Eu vejo o que vai no teu coração. A escuridão nada consegue ocultar de mim. Tem cuidado contigo, Arha!
Voltou costas e seguiu caminho, como os seus passos maciços e deliberados a esmagarem as ervas com as suas estrelas de geada sob os pés pesados, calçados de sandálias, dirigindo-se para a casa de pilares brancos do Rei-Deus.
A rapariga permaneceu no mesmo lugar, como se pregada ao chão, ereta, um vulto delgado e escuro, no pátio da frente da Casa Grande. Ninguém se movia, nada se movia, a não ser Kossil, em toda a vasta paisagem de pátio e templo, de colina e planície desértica e montanha.
— Que os Poderes da Treva te consumam a alma, Kossil! — bradou Arha numa voz semelhante ao grito do falcão e, erguendo o braço com a mão rigidamente estendida, lançou a maldição sobre as costas volumosas da sacerdotisa, precisamente quando ela punha o pé no primeiro degrau do seu templo. Kossil cambaleou, mas não parou nem se voltou. Seguiu em frente e atravessou a porta do Rei-Deus.
Arha passou todo esse dia sentada no degrau mais baixo do Trono Vazio. Não se atreveu a entrar no Labirinto e não queria a companhia das outras sacerdotisas. Tomara-a uma opressão que a manteve ali, hora após hora, no frio poeirento da grande sala. Olhava os pares de espessas e pálidas colunas que se perdiam nas trevas, lá no fundo distante da sala, e os raios de luz do dia que se infiltravam pelos buracos do teto, e as densas volutas do fumo de carvão a elevarem-se das trípodes de bronze, perto do Trono. Fazia desenhos com os ossinhos de rato na escada de mármore, a cabeça pendida, a mente ativa e, no entanto, entorpecida. «Quem sou eu?», perguntava a si própria e não obtinha resposta.
Arrastando os pés, Manane aproximou-se, atravessando a sala por entre as duplas filas de colunas, quando a luz havia muito deixara de cintilar sobre a escuridão e o frio se tornara intenso. No rosto empastado de Manane havia uma grande tristeza. Deixou-se ficar a alguma distância dela, as grandes mãos pendendo aos lados do corpo. A bainha rasgada do seu manto acastanhado balançava-lhe junto a um calcanhar.
— Senhorazinha.
— O que é, Manane? — perguntou ela, olhando-o com um afeto baço.
— Pequenina, deixa-me fazer o que tu disseste… o que tu disseste que tinha sido feito. Ele tem de morrer, pequenina. Ele enfeitiçou-te. A Kossil não passa sem se vingar. Ela é velha e cruel e tu demasiado jovem. Não tens força suficiente.
— Ela não pode causar-me mal.
— Se ela te matasse, ainda que fosse à vista de todos, às claras, não há ninguém em todo o Império que se atrevesse a puni-la. Ela é a Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus e é o Rei-Deus que governa. Mas ela não te matará às claras. Vai ser a ocultas, com veneno, de noite.
— Então eu voltarei a nascer.
Manane retorceu as mãos.
— Talvez ela não te mate — sussurrou.
— Que queres tu dizer?
— Ela podia fechar-te numa sala no… lá em baixo… Como tu lhe fizeste a ele. E ficarias viva talvez durante anos e anos. Anos… E não nasceria Sacerdotisa nenhuma porque tu não estarias morta. Mas também não haveria Sacerdotisa dos Túmulos e as danças da lua nova não seriam dançadas, os sacrifícios não seriam feitos, o sangue não seria derramado e o culto dos Senhores da Treva podia ser esquecido, para sempre. Ela e o Senhor que ela serve bem gostariam que assim fosse.
— Mas eles libertar-me-iam, Manane.
— Não enquanto estiverem irados contra ti, senhorazinha, — segredou Manane.
— Irados?…
— Por causa dele… O sacrilégio que não foi remido. Ai, pequenina, pequenina! Eles não perdoam!
Ela permaneceu sentada na poeira do degrau de baixo, deixando pender a cabeça. Olhou para uma coisa minúscula que segurava na palma da mão, a diminuta caveira de um rato. Os mochos nas traves sobre o Trono agitaram-se ligeiramente. Ia escurecendo à aproximação da noite.
— Não desças ao Labirinto esta noite — aconselhou Manane muito baixinho. — Vai para a tua casa e dorme. De manhã vai ter com Kossil e diz-lhe que retiras dela a maldição. E isso bastará. Não precisas de te afligir. Eu mostrar-lhe-ei a prova.
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