— Preferia — disse o Arquimago.
— Bom — comentou o Porteiro —, serão os mochos capazes de impedir o falcão de voar?
— Mas onde poderias ir? — perguntou o Mestre da Mudança, ao que o Chantre respondeu:
— Procurar o nosso rei e conduzi-lo ao seu trono!
O Arquimago olhou intensamente o Chantre, mas limitou-se a responder:
— Iria para onde houvesse problemas.
— Para sul ou para ocidente — especificou o Mestre Chave-do-Vento.
— E para norte ou oriente, se necessário fosse — acrescentou o Porteiro.
— Mas tu és necessário aqui, meu Senhor — contrapôs o Mestre da Mudança. — Em vez de ires às cegas procurar entre gente hostil sobre mares estranhos, não seria mais sensato ficar aqui, onde toda a magia é forte, e descobrir pelas tuas artes que mal ou desordem é este?
— As minhas artes não me aproveitam — respondeu o Arquimago. E algo havia na sua voz que os forçou a todos a fitá-lo, graves e de olhar apreensivo. — Eu sou o Guardião de Roke e não é de ânimo leve que deixarei Roke. Desejaria que a vossa recomendação e a minha fossem a mesma. Mas, de momento, não é de esperar que isso aconteça. A decisão tem de ser minha. E devo partir.
— Com essa decisão nos conformamos — disse o Mestre da Invocação.
— Mais, partirei sozinho. Vós sois o Concílio de Roke e o Concílio não deve ser dividido. Contudo, alguém levarei comigo, se ele quiser vir. — E olhou para Arren. — Ontem, ofereceste-te para me servir. E na noite passada o Mestre das Configurações disse: «Não é por acaso que alguém vem até às costas de Roke. E não é por acaso que o portador destas novas é um filho de Morred.» E não teve mais palavra alguma para nos dizer durante toda a noite. Pergunto-te pois, Arren. Virás comigo?
— Irei, meu Senhor — respondeu Arren com a garganta seca.
— Decerto que o príncipe, teu pai, não te deixaria expores-te a este perigo — disse o Mestre da Mudança com alguma rispidez. E logo para o Arquimago: — O rapaz é muito novo e pouco sabedor de feitiçaria.
— Eu tenho anos e esconjuros que chegam para nós dois — retorquiu Gavião secamente. — Arren, o que diria o teu pai?
— O meu pai deixar-me-ia ir.
— Como podes sabê-lo? — inquiriu o Mestre da Invocação. Arren não sabia onde lhe pediam que fosse, nem quando, nem porquê. Estava confuso e envergonhado perante aqueles homens graves, diretos e terríveis. Se tivesse tido tempo para pensar, não teria dito uma palavra que fosse. Mas não havia tempo para pensar. O Arquimago perguntara-lhe: «Virás comigo?». Assim, respondeu:
— Ao enviar-me aqui, o meu pai disse-me: «Temo que um tempo de trevas esteja prestes a cair sobre o mundo, um tempo de perigo. Por isso te envio a ti, em vez de qualquer outro mensageiro, porque tu és capaz de ajuizar se deveríamos pedir o auxílio da Ilha dos Sages neste assunto, ou oferecer-lhes o auxílio de Enlad.» Portanto, se for necessário, para isso aqui me encontro.
Ao dizer isto, viu que o Arquimago sorria. Embora fosse um sorriso breve, havia nele grande doçura.
— Estão a ver? — disse para os sete magos. — Poderiam os anos ou a magia acrescentar alguma coisa a isto?
Arren sentiu que o olhavam aprovadoramente, mas ainda com uma expressão como de quem pondera ou duvida. E o Mestre da Invocação, com as suas sobrancelhas arqueadas a unirem-se num enrugar de testa, disse:
— Não entendo isto, meu Senhor. Que estejas determinado a partir, sim. Há cinco anos que aqui estás enjaulado. Mas, antes, sempre estavas sozinho. Sempre partiste sozinho. Porquê, agora, acompanhado?
— Antes, nunca precisei de auxílio — disse o Gavião, com um traço de ameaça ou ironia na voz. — E agora encontrei um companheiro à altura.
Desprendia-se dele algo de perigoso e o Mestre da Invocação não voltou a falar, embora mantivesse a testa enrugada.
Mas o Mestre das Ervas, de olhos pacíficos e tez escura como um sábio e paciente boi, ergueu-se do seu lugar em todo o seu monumental volume.
— Vai, meu Senhor — disse. — Vai e leva o rapaz. A nossa confiança vai contigo.
Um a um, todos os outros assentiram silenciosamente e, sozinhos ou aos pares, foram saindo, até que dos sete apenas ficou o Mestre da Invocação.
— Ouve, Gavião — disse. — Não é minha intenção questionar a tua decisão. Direi apenas que, se tens razão, se há desequilíbrio e o perigo de um grande mal, então uma viagem para Uothort, ou para a Estrema Ocidental, ou até aos confins do mundo, nunca será suficientemente longe. Poderás levar este companheiro até onde talvez tenhas de ir? E será isso justo para ele?
Estavam afastados de Arren e o Mestre da Invocação mantivera a voz baixa, mas o Arquimago falou abertamente:
— É justo.
— Não estás a dizer-me tudo o que sabes — contrapôs o Mestre da Invocação.
— Se eu soubesse, falaria. Nada sei, mas suponho muito.
— Deixa-me ir contigo.
— Alguém tem de guardar as portas.
— O Mestre Porteiro faz isso…
— Não são apenas as portas de Roke. Fica. Fica e vigia a madrugada a ver se nasce clara, e vigia as muralhas de pedra a ver quem as atravessa e para onde se voltam os seus rostos. Há uma brecha, Thórione, há uma fenda, uma ferida, e é isso o que vou procurar. Se me perder, então talvez tu a encontres. Mas espera. Ordeno-te que esperes por mim.
Exprimia-se agora na Antiga Fala, a língua da Criação em que se lançam todos os verdadeiros encantamentos e da qual dependem todos os grandes atos de magia. Mas muito raramente é usada em conversação, exceto entre dragões. O Mestre da Invocação não discutiu nem protestou mais. Antes, vergando a sua elevada estatura numa reverência, cumprimentou tanto o Arquimago como Arren e saiu.
A lenha estalava na lareira. Não havia qualquer outro ruído. Fora das janelas, o nevoeiro acumulava-se, informe e sombrio.
O Arquimago tinha o olhar fito nas chamas, parecendo ter esquecido a presença de Arren. O rapaz mantinha-se a uma certa distância da lareira, sem saber se devia retirar-se ou esperar que o mandassem embora, irresoluto e algo desolado, sentindo-se de novo como uma pequena figura num espaço escuro, perturbante e ilimitado.
— Iremos primeiro à Cidade de Hort — disse o Gavião, voltando as costas ao fogo. — É ali que se reúnem todas as novas vindas da Estrema Sul, por isso talvez encontremos uma pista. O teu barco ainda te espera na baía. Fala com o mestre de bordo e ele que leve uma mensagem a teu pai. Creio que deveríamos partir tão breve quanto possível. Amanhã, ao romper do dia. Vai ter às escadas junto do alpendre onde se guardam os barcos.
— Meu Senhor, o que é… — a voz embargou-se-lhe por um momento. — O que é que procuras?
— Não sei, Arren.
— Mas então…
— Então como poderei procurá-lo? Também não sei isso. Talvez o que for me procure a mim.
Descobriu os dentes num meio sorriso para Arren, mas o seu rosto permaneceu rígido como ferro sob a luminosidade cinzenta das janelas.
— Meu Senhor — disse Arren, e a sua voz era agora segura —, é certo que descendo da linhagem de Morred, se é que podemos estar certos do traçado de tão antiga linhagem. E se puder servir-te, considerarei ser essa a maior oportunidade e honra da minha vida, pois nada há que mais desejasse fazer. Só temo que me julgues algo mais do que realmente sou.
— Talvez — comentou o Arquimago.
— Não tenho grandes dons ou talentos. Sei esgrimir com a espada curta e com a nobre. Sei governar um barco. Conheço as danças da corte e as danças dos camponeses. Sou capaz de aplacar uma zanga entre cortesãos. Sei lutar corpo a corpo. Sou um mau arqueiro mas tenho perícia no jogo da péla. Sei cantar e tocar a harpa e o alaúde. E é tudo. Não há mais nada. Que utilidade poderei eu ter para ti? O Mestre da Invocação estava certo…
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