Albert avançou empertigado pela fileira de homens, vez por outra cutucando uma barriga com o bastão. Sua mente dançava. Voltar? Jamais. Aquilo era o poder, aquilo era viver! Ele desafiaria o antigo patrão e cuspiria em seu olho vazio.
Pelo Espelho Fumegante de Grism, vamos ter mudanças por aqui!
Os magos que estudavam história assentiram, constrangidos. Seria voltar ao chão de pedra, a acordar quando ainda estava escuro, a nada de álcool em nenhuma circunstância e à memorização dos verdadeiros nomes de tudo até que o cérebro rangesse.
— O que esse homem está fazendo?
O mago que vinha distraidamente vasculhado seu saco de tabaco deixou o cigarro cair dos dedos trêmulos. A bagana quicou ao atingir o chão, e todos os magos observaram-na rolar com olhos desejosos até Albert dar um passo adiante e esmagá-la.
Albert fez meia-volta. Rincewind, que o vinha seguindo como uma espécie de ajudante extra-oficial, quase deu um encontrão nele.
— Você! Rincewind! Fuma?
— Não, senhor! Vício nojento!
Rincewind evitou o olhar dos superiores. De repente se deu conta de que havia feito mais inimigos para o resto da vida, e não era consolo nenhum saber que isso provavelmente não duraria muito.
— Exatamente! Segure o bastão. Agora, seu bando de relapsos miseráveis, isso vai acabar, ouviram? Amanhã, ao raiar do dia, primeira coisa: três voltas no pátio e depois exercícios físicos aqui! E esse maldito macaco vai para o circo!
— Oook?
Vários dos magos mais velhos fecharam os olhos.
— Mas antes — disse Albert, baixando o tom de voz — vocês vão me fazer o favor de organizar o Rito de AshkEnte. Tenho alguns assuntos pendentes — acrescentou.
Mortimer avançava pelos corredores escuros da pirâmide, com Ysabell correndo em seu encalço. O leve brilho da espada iluminava coisas pavorosas. Offler, o Deus Crocodilo, era um anúncio de cosméticos comparado a alguns dos seres que o povo de Tsort venerava. Nas alcovas ao longo do caminho havia estátuas aparentemente construídas com todas as partes que Deus havia deixado de lado.
— Por que estão aqui? — sussurrou Ysabell.
— Os padres tsorteanos dizem que, quando a pirâmide se fecha, elas ganham vida e rondam os corredores para proteger o corpo do rei — explicou Mort.
— Que superstição horrível!
— Quem falou em superstição? — perguntou Mort, distraído.
— Ficam vivas mesmo?
— Só estou dizendo que, quando os tsorteanos jogam maldição num lugar, não brincam em serviço.
Mortimer dobrou um corredor e, por um momento terrível, Ysabell perdeu-o de vista. A garota saiu correndo pela escuridão e se chocou contra ele. Mortimer estava examinando um pássaro com cabeça de cachorro.
— Argh! — disse ela. — Não lhe dá calafrios?
— Não — respondeu Mortimer, impassível.
— Por que não?
— Porque sou mort.
Ele se virou, e ela viu os olhos brilharem como dois pontinhos azuis.
— Pare com isso!
— EU... NÃO CONSIGO.
Ela tentou rir. Não funcionou.
— Você não é o Morte — objetou ela. — Só está fazendo o trabalho dele.
— Morte é quem quer que faça o trabalho de Morte.
A longa pausa que se seguiu foi interrompida por um gemido mais adiante no corredor escuro. Mortimer se virou e correu para lá.
Ele está certo, pensou Ysabell. Mesmo o jeito de andar... Mas o medo das trevas se sobrepôs a quaisquer conjecturas e ela correu atrás dele, dobrando uma esquina e chegando ao que, sob o brilho intermitente da espada, parecia um misto de tesouro e sótão muito bagunçado.
— Que lugar é esse? — sussurrou ela. — Nunca vi tanta coisa!
— O REI LEVA PARA O ALÉM — informou Mort.
— Com certeza não gosta de viajar com pouca bagagem. Olhe, tem um barco inteiro. E uma banheira de ouro!
— Vai querer ficar limpo quando chegar lá.
— E todas essas estátuas!
— Sinto dizer que essas estátuas são gente. Servos do rei, entende?
O rosto de Ysabell endureceu.
— OS PADRES DÃO VENENO A ELES.
Do outro lado do cômodo abarrotado, veio outro gemido. Mortimer seguiu em direção ao som, avançando por sobre rolos de tapete, pencas de tâmara, caixas de louça e sacos de pedra preciosa. Obviamente o rei não havia conseguido decidir o que deixar para trás e resolvera agir com prudência e levar tudo.
— SÓ QUE NEM SEMPRE FUNCIONA RÁPIDO — acrescentou Mort, com tristeza.
Aos trancos, Ysabell seguiu-o e espiou por sobre a canoa, deparando-se com uma menina deitada numa pilha de cobertores. Ela vestia calça de algodão, um colete feito com material insuficiente e pulseiras bastantes para atracar um navio de bom tamanho. Havia uma mancha verde em torno da boca.
— Dói? — perguntou Ysabell, em voz baixa.
— Não. Eles acham que isso vai levá-los ao paraíso.
— E vai?
— Quem sabe? Talvez.
Mortimer tirou a ampulheta do bolso e inspecionou-a sob o brilho da espada. Pareceu contar para si mesmo e então, com um movimento súbito, jogou a ampulheta por sobre o ombro e trouxe a espada abaixo com a outra mão.
A sombra da menina sentou e se espreguiçou, com um leve tinido das jóias espectrais. Ela viu Mortimer e fez uma reverência com a cabeça.
— Meu senhor!
— NÃO SOU SENHOR DE NINGUÉM — rebateu Mort. — AGORA VÁ PARA ONDE QUER QUE ACREDITE ESTAR INDO.
— Vou ser concubina na paradisíaca corte do rei Zetesphut, que vai viver para sempre entre as estrelas — afirmou ela.
— Você não precisa ser isso — retrucou Ysabell. De olhos arregalados, a menina se virou para ela.
— Ah, preciso, sim. Estudei para isso — explicou, enquanto desaparecia de vista. — Até agora só consegui ser escrava.
Ela sumiu. Ysabell continuou olhando com desaprovação para o lugar em que a garota estivera.
— Bem — disse, afinal. — Viu o que ela estava usando?
— Vamos sair daqui.
— Mas não pode ser verdade essa história de o rei Sei-lá-Quem viver entre as estrelas — resmungou ela, enquanto procuravam à saída do quarto entupido. — Lá não tem nada.
— É DIFÍCIL EXPLICAR — considerou Mort. — ELE VAI VIVER ENTRE AS ESTRELAS NA PRÓPRIA CABEÇA.
— Com os escravos?
— SE É O QUE ACREDITAM SER.
— Não é justo.
— NÃO TEM JUSTIÇA — argumentou Mort. — SÓ NÓS.
Os dois se apressaram pelos corredores de almas expectantes e já estavam quase correndo quando irromperam no ar noturno do deserto. Arfante, Ysabell se encostou na parede de pedra.
Mort não estava sem fôlego.
Não estava respirando.
— VOU LEVÁ-LA AONDE QUISER — disse. — E VOCÊ FICA POR LÁ.
— Mas achei que quisesse salvar a princesa!
Mort sacudiu a cabeça.
— NÃO TENHO ESCOLHA. NÃO EXISTEM ESCOLHAS.
Ela correu adiante e agarrou-o pelo braço. Com suavidade, ele afastou a mão dela.
— Terminei o aprendizado.
— Está tudo na sua cabeça! — gritou Ysabell. — Você é o que que é!
Ela se deteve e olhou para baixo. A areia em volta dos pés de Mortimer estava começando a formar pequenos jatos e retorcidos demônios de areia.
Ouviu-se um estalo, e o ar ganhou uma textura viscosa. Mort ficou apreensivo.
— Alguém está realizando o Rito de Ash...
Um vento vindo como martelo do céu soprou a areia para uma espécie de cratera. Surgiu um chiado baixo e um cheiro de estanho aquecido.
Girando como em sonho, sozinho no centro tranqüilo do redemoinho, Mortimer olhou o vento de areia ao redor. Raios cortavam o turbilhão. Dentro de sua própria mente, tentava se libertar, mas algo o havia prendido, e ele não conseguiu resistir mais do que uma agulha de bússola conseguiria ignorar a pressão de apontar para o Centro.
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