Harry caminhou em direção a Neville, que ia se curvando para outro cadáver.
— Neville.
— Caramba, Harry, você quase me fez infartar!
Harry despira a Capa da Invisibilidade: a idéia acabara de lhe ocorrer, nascida de um desejo de garantir o desfecho.
— Onde é que você está indo sozinho? — perguntou Neville, desconfiado.
— É tudo parte do plano — respondeu Harry. — Tem uma coisa que eu preciso fazer. Escute... Neville...
— Harry! — De repente o amigo se apavorou. — Harry, você não está pensando em se entregar, está?
— Não — mentiu Harry, sem hesitação. — Claro que não... é outra coisa. Mas eu talvez fique invisível por um tempo. Você conhece a cobra de Voldemort, Neville? Ele tem uma cobra enorme... chama-a de Nagini...
— Já ouvi falar... e daí?
— Ela tem que ser morta. Rony e Hermione sabem disso, mas caso eles...
O horror daquela possibilidade o sufocou por um momento, impedindo-o de continuar a falar. Recuperou, porém, o controle: isto era crítico, ele precisava ser como Dumbledore, manter a cabeça fria, garantir que houvesse substitutos, outros para dar prosseguimento. Dumbledore morrera na certeza de que três pessoas ainda sabiam das Horcruxes; agora, Neville tomaria o lugar de Harry: continuaria a haver três que conheciam o segredo.
— Se eles estiverem... ocupados... e você tiver a chance de...
— Matar a cobra?
— Matar a cobra — repetiu Harry.
— Certo, Harry. Você está o.k., não está?
— Estou ótimo. Obrigado, Neville.
Neville, porém, agarrou Harry pelo pulso quando o amigo fez menção de se afastar.
— Nós todos vamos continuar a lutar, Harry. Você já sabe?
— É, eu...
A sensação de sufocamento cortou o fim da frase, ele não pôde continuar. Neville aparentemente não achou isso estranho. Deu uma palmada no ombro de Harry, soltou-o e saiu a procurar outros mortos.
Harry tornou a vestir a capa e continuou a andar. Havia mais alguém se movendo não muito longe, curvando-se para outro vulto deitado de bruços no chão. Ele estava a vários passos de distância quando reconheceu Gina.
Estacou. Ela estava debruçada sobre uma garota que sussurrava, chamando pela mãe.
— Está tudo bem — dizia Gina. — Tudo o.k. Vamos levar você para dentro.
— Mas quero ir para casa — murmurou a garota. — Não quero mais lutar!
— Eu sei — disse Gina, e sua voz quebrou. — Vai dar tudo certo.
Arrepios percorreram em ondas a pele de Harry. Ele queria gritar para a noite, queria que Gina soubesse que ele estava ali, queria que soubesse aonde estava indo. Queria que o fizessem parar, que o arrastassem de volta, que o mandassem para casa...
Contudo, ele estava em casa. Hogwarts era a primeira e melhor casa que conhecera. Ele, Voldemort e Snape, os garotos abandonados, tinham encontrado ali um lar...
Gina estava agora ajoelhada ao lado da garota ferida, segurando sua mão. Com um esforço supremo, Harry se obrigou a prosseguir. Pensou ter visto Gina olhar para os lados quando passou, e se perguntou se ela teria pressentido alguém andando por perto, mas ele não falou, e tampouco quis olhar para trás.
A cabana de Hagrid assomou na escuridão. Não havia luzes, nem o ruído de Canino arranhando a porta, seu latido bradando as boas-vindas, nenhuma das visitas que fizera a Hagrid, e o brilho da chaleira de cobre no fogo, os bolos com passas e os vermes gigantescos, e sua enorme cara barbuda, e Rony vomitando lesmas, e Hermione ajudando-o a salvar Norberta...
Ele continuou andando e, ao chegar à orla da Floresta, parou.
Um enxame de dementadores deslizava entre as árvores; ele sentia sua frialdade, e não teve certeza se seria capaz de atravessá-la são e salvo. Não lhe restavam forças para conjurar um Patrono. Já não conseguia controlar os seus tremores. Afinal, não era tão fácil morrer. Cada segundo que respirava, o cheiro do capim, o ar fresco no rosto, tudo era muito precioso: pensar que as pessoas tinham anos a fio, tempo para desperdiçar, tanto tempo que se arrastava, e ele se apegando a cada segundo. Simultaneamente, ele pensou que não seria capaz de continuar, e sabia que devia. O demorado jogo terminara, o pomo de ouro fora capturado, era hora de sair do ar...
O pomo. Seus dedos desvigorados apalparam por um momento a bolsa que trazia ao pescoço e puxaram a bolinha.
Abro no fecho.
Respirando forte e rápido, Harry o contemplou. Agora que queria que o tempo passasse o mais lentamente possível, este parecia ter acelerado, e a compreensão sobreveio tão rápido que pareceu prescindir do pensamento. Este era o fecho. Este era o momento.
Ele encostou o metal dourado nos lábios e sussurrou:
— Estou prestes a morrer.
A concha de metal se abriu. Ele baixou a mão trêmula, ergueu a varinha de Draco sob a capa e murmurou:
— Lumus!
A pedra negra com a fenda irregular ao centro estava aninhada nas duas metades do pomo. A Pedra da Ressurreição cortava a linha vertical que representava a Varinha das Varinhas. O triângulo e o círculo representando a capa e a pedra ainda eram perceptíveis.
E novamente Harry compreendeu, sem precisar pensar. Não fazia diferença trazê-los de volta, porque estava prestes a se reunir a eles. Não ia realmente buscá-los: eles estavam vindo buscá-lo.
O garoto fechou os olhos, e virou a pedra na mão três vezes.
Soube que tinha acontecido, porque ouviu leves movimentos ao seu redor que sugeriam corpos frágeis pisando o chão terroso coberto de gravetos que marcava a orla externa da Floresta. Abriu os olhos e relanceou ao redor.
Não eram fantasmas nem propriamente corpos, isto ele via. Lembravam mais o Riddle que escapara do diário, havia tanto tempo, e aquele fora uma lembrança quase sólida. Menos substancial do que corpos viventes, mas muito mais do que fantasmas, eles vieram ao seu encontro e em cada rosto havia o mesmo sorriso amoroso.
Tiago tinha exatamente a mesma altura que Harry. Usava as roupas com que morrera, e seus cabelos estavam descuidados e arrepiados, e os óculos tortos como os do sr. Weasley.
Sirius estava alto e bonito e muito mais jovem do que Harry o vira em vida. Andava com uma elegância natural, as mãos nos bolsos e um sorriso no rosto.
Lupin estava mais jovem também, e muito menos desleixado, e seus cabelos eram mais bastos e mais escuros. Parecia feliz de voltar a este lugar familiar, cenário de tantas divagações na adolescência.
O sorriso de Lílian era o maior. Ela afastou os longos cabelos para as costas ao se aproximar, e seus olhos verdes, tão semelhantes aos dele, examinaram seu rosto vorazmente, como se nunca tivesse tido tempo de olhá-lo o suficiente.
— Você tem sido tão corajoso!
Ele não pôde falar. Seus olhos se banquetearam nela, e lhe ocorreu que gostaria de ficar parado, contemplando-a para sempre, e que isto seria suficiente.
— Você está quase chegando — disse Tiago. — Muito perto. Estamos... tão orgulhosos de você.
— Dói?
A pergunta infantil escapara dos lábios de Harry antes que ele pudesse contê-la.
— Morrer? Nem um pouco — respondeu Sirius. — Mais rápido e mais fácil do que adormecer.
— E ele vai querer que seja rápido. Quer terminar logo — disse Lupin.
— Eu não queria que você tivesse morrido — disse Harry, as palavras saindo involuntariamente. — Nenhum de vocês. Sinto muito...
Ele se dirigia mais a Lupin do que a qualquer dos demais, súplice.
— ... logo depois de ter tido um filho... Remo, sinto muito...
— Eu também sinto. Lamento que nunca chegarei a conhecê-lo... mas ele saberá por que morri, e espero que entenda. Estive tentando construir um mundo em que ele pudesse viver uma vida mais feliz.
Читать дальше
Конец ознакомительного отрывка
Купить книгу