Ah, desgraça inerentes à raça!
o grito torturante da morte
e o golpe que atingiu a veia,
o sangramento inestancável, a dor,
a maldição insuportável.
Mas há uma cura dentro
e não fora de casa, não
vinda de outros mas deles próprios
por sua disputa sangrenta. Apelamos a vós,
deuses da sombria terra.
Ouvi bem-aventurados poderes soterrâneos –
atendei o nosso apelo, socorrei-nos
Favorecei os filhos, dai-lhes a vitória.
Ésquilo, As coéforas
A morte é apenas uma travessia do mundo, tal como os amigos que atravessam o mar e permanecem vivos uns nos outros. Porque sentem necessidade de estar presentes, para amar e viver o que é onipresente. Nesse espelho divino vêem-se face a face; e sua conversa é livre e pura. Este é o consolo dos amigos e embora se diga que morrem, sua amizade e convívio estão, no melhor sentido, sempre presentes, porque são imortais.
William Penn, More Fruits of Solitude
1
A ascensão do Lorde das Trevas
Os dois homens se materializaram inesperadamente, a poucos metros de distância, na estreita ruazinha iluminada pelo luar. Por um momento eles ficaram imóveis, as varinhas apontadas para o peito um do outro; então, reconhecendo-se, guardaram a varinha sob a capa e começaram a andar apressados na mesma direção.
— Novidades? — perguntou o mais alto dos dois.
— As melhores — respondeu Severo Snape.
A rua era ladeada por um silvado, à esquerda, e por uma sebe alta e cuidadosamente aparada, à direita. As longas capas dos homens esvoaçavam ao redor dos tornozelos enquanto eles caminhavam.
— Pensei que fosse me atrasar — disse Yaxley, suas feições grosseiras desaparecendo e reaparecendo à sombra dos galhos de árvores que se interpunham ao luar. — Foi um pouco mais complicado do que imaginei. Mas acho que ele ficará satisfeito. Você tem certeza de que será bem recebido?
Snape assentiu sem, contudo, dar explicações.
Os homens viraram para um largo caminho de entrada, à direita. A alta sebe margeava e se estendia para além do impressionante portão de ferro trabalhado que barrava a entrada. Em silêncio, ambos ergueram o braço esquerdo numa espécie de saudação e atravessaram o portão, como se o metal escuro fosse apenas fumaça.
As sebes de teixo abafaram os passos dos homens. Ouviu-se um farfalhar à direita. Yaxley tornou a sacar a varinha, apontando-a por cima da cabeça do seu companheiro, mas a fonte do ruído fora apenas um pavão alvíssimo, que caminhava, majestoso, ao longo do topo da sebe.
— Ele sempre soube viver, o Lúcio. Pavões ... — Com um bufo de desdém, Yaxley tornou a guardar a varinha sob a capa.
Um belo casarão se destacou nas trevas, no final do caminho reto, as luzes faiscando nas janelas em formato de losango do andar térreo. Em algum lugar no jardim escuro, atrás dos arbustos, uma fonte jorrava. O saibro começou a estalar sob os pés, quando Snape e Yaxley apressaram o passo em direção à porta da frente, que se abriu à sua aproximação, embora ninguém parecesse tê-la aberto.
O hall de entrada era grande, mal iluminado e suntuosamente decorado, e um magnífico tapete cobria quase todo o piso de pedra. Os olhos dos rostos pálidos nos retratos das paredes acompanharam Snape e Yaxley assim que eles passaram. Os dois homens se detiveram à frente de uma pesada porta de madeira que levava a outro cômodo, hesitaram o tempo de uma pulsação, então Snape girou a maçaneta de bronze.
A sala estava cheia de pessoas silenciosas, sentadas a uma comprida mesa ornamentada. Os móveis que habitualmente a guarneciam tinham sido empurrados descuidadamente contra as paredes. A iluminação provinha das chamas vivas de uma bela lareira, cujo console de mármore era encimado por um espelho dourado. Snape e Yaxley pararam um instante à entrada. À medida que seus olhos se acostumaram à penumbra, sua atenção foi atraída para o detalhe mais estranho da cena: o vulto de uma pessoa aparentemente desacordada suspensa de cabeça para baixo sobre a mesa, girando lentamente como se estivesse presa por uma corda invisível, e se refletindo no espelho e na superfície nua e lustrosa da mesa. Nenhuma das pessoas sentadas à roda dessa visão singular a encarava, exceto um jovem pálido que estava praticamente embaixo. Parecia incapaz de se conter e erguia os olhos a todo instante.
— Yaxley, Snape — falou uma voz aguda e clara da cabeceira da mesa —, vocês estão praticamente atrasados.
O dono da voz estava sentado defronte à lareira, de modo que, a princípio, os recém-chegados tiveram dificuldade em distinguir mais que a sua silhueta. À medida que se aproximaram, porém, seu rosto se destacou na obscuridade, imberbe, ofídico, com fendas estreitas no lugar das narinas e olhos vermelhos e brilhantes de pupilas verticais. Era tão pálido que parecia emitir uma aura perolada.
— Severo, aqui — disse Voldemort, indicando a cadeira imediatamente à sua direita. — Yaxley, ao lado de Dolohov.
Os dois homens ocuparam os lugares designados. Os olhares da maioria dos que estavam à mesa seguiram Snape, e foi a ele que Voldemort se dirigiu primeiro.
— E então?
— Milorde, a Ordem da Fênix pretende transferir Harry Potter do lugar seguro em que está, no sábado, ao anoitecer.
O interesse ao redor da mesa se intensificou perceptivelmente. Alguns enrijeceram, outros se mexeram, todos atentos a Snape e Voldemort.
— Sábado... ao anoitecer — repetiu Voldemort. Seus olhos vermelhos se fixaram nos olhos pretos de Snape com tanta intensidade que alguns dos observadores desviaram o olhar, aparentemente receosos de serem atingidos pela ferocidade daquela fixidez. Snape, no entanto, sustentou esse olhar calmamente, e, após um momento, os lábios descarnados de Voldemort se curvaram num aparente sorriso.
— Bom. Muito bom. E essa informação veio de...?
— Da fonte sobre a qual conversamos — disse Snape.
— Milorde.
Yaxley tinha se inclinado para a frente procurando ver Voldemort e Snape. Todos os rostos se voltaram para ele.
— Milorde, eu ouvi coisa diferente.
Yaxley aguardou, mas Voldemort não objetou, então ele prosseguiu.
— Dawlish, o auror, deixou escapar que Potter não será transferido até o dia trinta à noite, na véspera do seu aniversário de dezessete anos.
Snape sorriu.
— Minha fonte informou que planejam divulgar uma pista falsa; deve ser essa. Sem dúvida, lançaram em Dawlish um Feitiço para Confundir. Não seria a primeira vez, todos conhecem a sua suscetibilidade a feitiços.
— Posso lhe assegurar, Milorde, que Dawlish me pareceu muito seguro do que dizia — contrapôs Yaxley.
— Se foi confundido, é óbvio que parecerá seguro — disse Snape. — Garanto a você, Yaxley, que a Seção de Aurores não irá participar da proteção de Harry Potter. A Ordem acredita que estamos infiltrados no Ministério.
— Então, pelo menos nisso a Ordem acertou, hein? — comentou um homem atarracado, a pouca distância de Yaxley, dando uma risadinha sibilada que ecoou pela mesa.
Voldemort não riu. Seu olhar se desviou para o alto, para o corpo que girava vagarosamente, e ele pareceu se alhear.
— Milorde — continuou Yaxley —, Dawlish acredita que vão usar um destacamento inteiro de aurores na transferência do garoto...
Voldemort ergueu a mão grande e branca, e Yaxley calou-se imediatamente, observando, rancoroso, o Lorde se dirigir outra vez a Snape.
— E em seguida, onde irão esconder o garoto?
— Na casa de um dos membros da Ordem — respondeu Snape. -O lugar, segundo a minha fonte, recebeu toda a proteção que a Ordem e o Ministério juntos puderam lhe dar. Acredito que seja mínima a chance de pormos as mãos nele uma vez que chegue ao destino, Milorde, a não ser, é claro, que o Ministério tenha caído antes de sábado, o que, talvez, nos desse a oportunidade de descobrir e desfazer um número suficiente de feitiços, e passar pelos demais.
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