“Ora”, pensou ela, “ele me atacou. Me agrediu.” E então pensou “A polícia. Tenho que chamar a polícia”.
Estendeu a mão para o telefone sobre a mesa e o pegou, ou tentou pegá-lo, mas ele parecia muito pesado, ou muito escorregadio, ou ambos, e ela não conseguia segurá-lo direito. Parecia um objeto esquisito em sua mão.
“Devo estar mais fraca do que imaginava”, decidiu. “Melhor pedir para mandarem um médico também.”
No bolso de seu paletó havia um pequeno celular prateado que tocava a música “Greensleaves” quando alguém ligava para ela. Ficou aliviada ao ver que o telefone ainda estava lá e que ela não encontrava dificuldade para segurá-lo. Enquanto esperava que atendessem, ficou imaginando por que ainda diziam discar um número, já que não havia mais discos nos telefones, coisa que existia quando era mais jovem. Depois disso, aqueles telefones tornaram-se aparelhos pesados que faziam um “triiiim” barulhento e tinham botões. Na adolescência, tivera um namorado que conseguia imitar, e o fazia repetidas vezes, o barulho desse tipo de telefone, uma habilidade — decidiu ela, pensando no passado — que constituía o único talento do rapaz. Ficou pensando no que teria acontecido com ele. Imaginou como um homem capaz de imitar o som de um telefone antigo conseguiria sobreviver num mundo em que os telefones tinham barulho de praticamente qualquer coisa...
— Pedimos desculpas pela demora para completar sua chamada — começou uma voz mecânica. — Por favor, aguarde.
Maeve sentia-se estranhamente calma, como se nada de mal jamais pudesse acontecer a ela novamente. Uma voz de homem atendeu: — Alô? A voz soava bastante prestativa.
— Eu preciso falar com a polícia.
— Você não precisa falar com a polícia. Todos os crimes serão solucionados pelas autoridades adequadas e implacáveis.
— Olha, acho que liguei para o número errado.
— Mesmo assim, no fim das contas, todos os números estão corretos. São apenas números, e portanto não podem estar certos ou errados.
— Que bom você me informar disso — respondeu Maeve. — Mas eu realmente preciso falar com a polícia. Talvez eu também precise de uma ambulância. E sem dúvida disquei o número errado.
Concluiu a chamada. Talvez, pensou ela, o 999 não funcionasse de um celular. Consultou a agenda de telefones do celular e ligou para a irmã. O telefone tocou uma vez, e uma voz familiar disse:
— Vou deixar claro: não estou dizendo que você ligou para o número errado de propósito. O que estou dizendo é que todos os números são, por sua natureza, corretos. Bom, exceto o pi, é claro. Eu não entendo o pi. Tenho dor de cabeça só de pensar nele, um número que continua, continua, continua, continua...
— Vou dizer uma coisa, Morris: se você ficar com esse tipo de atitude, eu mesma vou resolver o assunto. Não tem jeito de eu esquecer isso. Pra você, está tudo bem, você está morto. Não precisa se preocupar com essas coisas.
— Você também está morta, querida.
— Isso não vem ao caso — retrucou ela. E completou, surpresa: — Eu estou o quê? — E, antes que ele pudesse responder: — Morris, eu disse que ele tentou me matar. Não que conseguiu.
— Ahm.... — o finado Morris Livingstone parecia procurar as palavras certas. — Maeve, querida— Sei que isso pode ser meio chocante pra você, mas a verdade é que..
O telefone fez um barulho e surgiu na tela o sinal de bateria fraca.
— Não consigo te ouvir, Morris. Acho que a bateria está acabando.
— Você não tem bateria. Nem mesmo tem um telefone. É tudo uma ilusão. Estou tentando te dizer isso, que você transcendeu o vale do sei-lá-o-quê e agora está se tornando— ahm... é como o que acontece com os vermes e as borboletas, querida. Você sabe.
— Lagartas — corrigiu Maeve. — Lagartas e borboletas, você quer dizer.
— Ahm, isso mesmo. Lagartas. Foi o que eu quis dizer. Então no que os vermes se transformam?
— Eles não se transformam em nada, Morris — respondeu Maeve, meio irritada. — São vermes, só isso.
O telefone emitiu um som baixinho, como se fosse um arroto eletrônico, mostrou a figura de uma bateria fraca de novo e desligou.
Maeve fechou o celular e colocou-o de volta no bolso. Andou até a parede mais próxima e experimentou pressioná-la com o dedo. Parecia gelatinosa, fria, úmida. Exerceu um pouco mais de pressão, e a mão inteira atravessou a parede.
— Ai, meu Deus — disse, e começou a se apalpar. Pela enésima vez em sua existência, desejou que tivesse dado ouvidos a Morris, que, enfim admitiu, sabia mais a respeito da morte do que ela. “Ai, ai”, pensou, “estar morto deve ser mais ou menos como tudo na vida: você vai aprendendo com o tempo e se vira com o resto.”
Saiu pela porta da frente e percebeu que atravessava a parede no fundo da sala, entrando no prédio novamente. Tentou mais uma vez, e o resultado foi o mesmo. Então entrou na agência de viagens que ocupava o andar térreo do prédio e tentou atravessar a parede oeste.
Atravessou e viu que estava mais uma vez no hall de entrada, entrando pelo leste. Era como estar dentro de um aparelho de TV e tentar sair da tela. Em termos topográficos, o prédio parecia ter se tornado o seu universo.
Subiu as escadas para ver o que os detetives estavam fazendo. Observavam uma mesa para ver o que Grahame Coats tinha deixado para trás enquanto arrumava suas coisas.
— Sabe — começou Maeve, tentando ajudar —, estou numa salinha atrás da estante de livros. Estou lá dentro.
Eles a ignoraram.
A mulher agachou-se e começou a remexer no cesto de lixo.
— Arrá — exclamou, e de lá puxou uma camisa branca masculina com manchas de sangue. Colocou a camisa num saco plástico.
O homem gordo pegou o celular.
— Me tragam a perícia — pediu.
Fat Charlie agora via sua cela como um refúgio, não uma prisão. As celas ficavam bem no fundo do prédio, afinal de contas, bem longe até dos pássaros mais ousados. E seu irmão não estava ali. Ele não se importava mais com o fato de que nada acontecia na cela seis. Nada era infinitamente melhor que as inúmeras coisas que encontrara. Mesmo um mundo feito exclusivamente de castelos, baratas e gente que se chamava “K” era preferível a um mundo cheio de pássaros malignos que sussurravam seu nome em coro.
A porta abriu.
— Vocês não têm o costume de bater? — perguntou Fat Charlie.
— Não — respondeu o policial. — Pra falar a verdade, não temos, não. O seu advogado finalmente chegou.
— O senhor Merryman? — perguntou Fat Charlie. E parou de falar. Leonard Merryman era um cavalheiro rotundo, com óculos pequenos, dourados, e o homem de pé atrás do policial definitivamente não tinha essa aparência.
— Está tudo bem — disse o homem que não era seu advogado. — Pode nos deixar.
— Toque a campainha quando terminar — avisou o policial, e fechou a porta.
Spider pegou Fat Charlie pela mão e disse:
— Vou tirar você daqui.
— Mas eu não quero sair daqui. Não fiz nada.
— Uma ótima razão para sair daqui.
— Mas, se eu sair, aí é que terei feito. Serei um prisioneiro em fuga.
— Você não é um prisioneiro — disse Spider alegremente. —
Ainda não te acusaram de nenhum crime. Você só está ajudando com a investigação. Diga, está com fome?
— Um pouco.
— O que você quer? Chá? Café? Chocolate quente?
Chocolate quente pareceu-lhe extremamente apetitoso.
— Eu adoraria tomar um chocolate quente.
— Certo — concordou Spider. Pegou a mãe de Fat Charlie e continuou. — Feche os olhos.
— Por quê?
— É mais fácil.
Fat Charlie fechou os olhos, embora não tivesse certeza de que isso facilitaria as coisas. O mundo aumentou, diminuiu, e Fat Charlie sentiu-se enjoado. Então sua mente se acalmou, e ele sentiu uma brisa morna soprar no rosto.
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