Só que ele sempre conseguia mais coisas.
No caso de Spider, tudo o que precisava fazer era pedir.
A mãe de Rosie não era uma mulher dada a demonstrações de escárnio perante a má sorte dos outros. Quando a filha começou a chorar, sentada no sofá Chippendale, ela esforçou-se para não celebrar, cantar e fazer uma dancinha da vitória, sacolejando pela sala. Um observador cuidadoso no entanto perceberia o brilho de triunfo em seus olhos.
Ofereceu a Rosie um copo grande de água vitaminada e um cubo de gelo, e ouviu a litania chorosa da filha, que falava de sua mágoa e decepção. Quando terminou, o brilho de triunfo dera lugar a um olhar confuso. Ela sentia que sua cabeça estava a mil.
— Então — Fat Charlie não é realmente Fat Charlie? — perguntou.
— Não. Quer dizer, sim. Fat Charlie /Fat Charlie, mas na última semana eu andei saindo com o irmão dele.
— Eles são gêmeos?
— Não. Eu nem acho que são parecidos. Não sei. Estou tão confusa.
— Com qual dos dois você terminou?
Rosie assoou o nariz.
— Eu terminei com o Spider. O irmão de Fat Charlie.
— Mas você não estava noiva dele.
— Não, mas achava que sim. Achava que ele era Fat Charlie.
— Então você também terminou com Fat Charlie?
— Mais ou menos. Ainda não falei com ele sobre isso.
— Ele— sabia disso, dessa coisa do irmão? Foi algum tipo de conspiração pervertida o que fizeram com a minha pobre menininha?
— Acho que não. Mas não importa. Não posso me casar com ele.
— Não — concordou a mãe. — Sem dúvida não pode. De jeito nenhum.
Em sua mente, a mãe de Rosie fazia uma dancinha da vitória e lançava fogos de artifício.
— Arranjaremos um bom marido para você, não se preocupe. Aquele Fat Charlie— Eu sabia que havia algo ruim nele. Soube desde o momento em que o vi. Comeu a minha maçã de cera. Sabia que ele tinha problemas. Onde ele está agora?
— Não tenho certeza. Spider disse que talvez tenha sido levado pela polícia.
— Rá! — exultou a mãe, que elevou os fogos de artifício de sua mente ao nível da comemoração de Ano-Novo na Disneylândia e, de quebra, sacrificou uns 12 touros em celebração. Mas tudo o que disse em voz alta foi o seguinte:
— Talvez ele esteja agora na prisão. É o melhor lugar para ele. Eu sempre dizia que esse rapaz terminaria lá.
Rosie começou a chorar, até mais do que antes. Puxou outro lenço de papel da caixa e assoou o nariz com um barulho muito alto. Engoliu o choro, numa demonstração de bravura. Então chorou mais um pouco. A mãe lhe dava tapinhas consoladores na mão, do jeito mais consolador que conseguia. E disse:
— Mas é claro que você não pode se casar com ele. Você não pode se casar com um condenado à prisão. Por outro lado, se ele estiver preso, você pode facilmente terminar o noivado. — A sombra de um sorriso ameaçava aparecer no canto dos lábios enquanto ela continuava: — Eu posso ligar para ele se você quiser. Ou ir até lá em dia de visita e dizer que ele não presta e que você não quer vê-lo nunca mais. Podemos conseguir uma medida cautelar também.
— N-não— Não é por isso que eu não posso me casar com ele.
— Não? — perguntou a mãe, erguendo uma sobrancelha delineada perfeitamente com lápis.
— Não— Eu não posso me casar com Fat Charlie porque não estou apaixonada por ele.
— Claro que não. Eu sempre soube disso. Foi só uma paixãozinha boba, mas agora você está vendo a verdadeira...
— Estou apaixonada pelo Spider. O irmão dele — continuou Rosie, como se a mãe não estivesse falando. A expressão que tomou conta do rosto da mãe de Rosie parecia a de alguém num piquenique que vê um enxame de abelhas se aproximar. — Tudo bem. Eu também não vou me casar com ele. Já falei pra ele que não quero vê-lo mais.
A mãe de Rosie contraiu os lábios e disse:
— Bom— Não vou fingir que entendo o que está acontecendo, mas também não vou dizer que seja uma notícia ruim. — Aí a mãe de Rosie mudou de marcha em sua mente, e as roldanas de seus pensamentos se encaixaram de maneiras novas, diferentes: lingüetas se encaixavam e molas se retorciam. — Sabe qual seria a melhor coisa para você fazer num momento desses? — perguntou. — Já pensou em tirar umas férias? Ficarei feliz em pagar por tudo, já que estou economizando tanto dinheiro para o seu casamento— — Talvez não fosse a coisa correta a dizer. Rosie começou a soluçar novamente em seus lenços de papel. A mãe continuou: — De qualquer forma, será o meu presente. Sei que você não usou o período de férias do trabalho. E disse que agora as coisas estão tranqüilas por lá. Em épocas como essa, tudo o que uma mulher precisa é esquecer de tudo e relaxar.
Rosie ficou pensando se havia feito uma imagem errada da mãe durante todos esses anos. Fungou, engoliu o choro e respondeu:
— Isso parece legal.
— Então estamos combinadas. Eu vou com você, para cuidar da minha filhinha.
Em sua cabeça, por baixo do grande final da apresentação de fogos de artifício, ela acrescentou: “E para garantir que minha filhinha só se envolva com o tipo certo de homem”.
— Para onde a gente vai? — perguntou Rosie.
— A gente vai fazer um cruzeiro.
Fat Charlie não foi algemado. O que era uma coisa boa. Todo o resto foi ruim, mas ao menos não foi algemado. A vida se tornara um borrão confuso, cheia de detalhes: o sargento que cocava o nariz e preenchia seu cadastro — “A cela seis está vazia” — atrás de uma porta verde e o cheiro das celas, um fedor horrível que nunca sentira antes, mas que imediata e horrivelmente parecia familiar; uma névoa persistente de vômito, desinfetante, fumaça, cobertores sujos, privadas sem dar descarga, desespero. Era o cheiro do fundo do poço, o qual Fat Charlie parecia ter atingido.
— Se quiser dar descarga no vaso — começou o policial que o acompanhava pelo corredor — pressione o botão na sua cela. Um de nós uma hora vai aparecer para puxar a cordinha pra você. Isso impede que você dê descarga nas provas.
— Provas do quê?
— Deixa disso, amigo.
Fat Charlie suspirou. Ele dava descarga em seus próprios excrementos desde que tinha idade suficiente para ter certo orgulho de poder fazer isso. A perda dessa habilidade, mais que a perda de sua liberdade, era sinal de que tudo mudara.
— É a sua primeira vez então — disse o policial.
— Desculpe.
— Drogas?
— Não, obrigado.
— Prenderam você por causa de drogas?
— Não sei por que me prenderam. Eu sou inocente.
— Crime de colarinho branco, hein? — perguntou o policial, balançando a cabeça. — Olha, vou te contar uma coisa que os caras de colarinho azul já nascem sabendo. Se você facilitar as coisas pra gente, a gente facilita as coisas pra você. Vocês de colarinho branco. Vocês sempre estão tentando defender os próprios direitos. Só dificultam as coisas pro seu lado.
O policial abriu a porta da cela seis.
— Lar, doce lar — disse.
O fedor era pior dentro da cela, cujas paredes tinham sido pintadas de um jeito rajado para resistir às pichações. Continha apenas uma cama tipo prateleira, perto do chão, e um vaso sanitário sem tampa, no canto.
Fat Charlie colocou o cobertor que lhe deram sobre a cama.
— Certo — começou o policial. — Bom... fique à vontade. Se ficar entediado, não pense em entupir a privada com o cobertor, por favor.
— Por que eu faria uma coisa dessas?
— Eu também me pergunto isso. Por que será? Talvez pra quebrar a monotonia. Sei lá. Como eu sou o tipo de pessoa que obedece a lei e com uma aposentaria de policial à minha espera, na verdade nunca tive que passar muito tempo nessas celas.
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