Rand sentiu um calafrio. Virou-se para encarar Ingtar.
— Do que você está falando? — sussurrou.
Analisando a lâmina, o shienarano não pareceu ouvir.
— A humanidade está sucumbindo em todos os lados. Nações caem e desaparecem. Os Amigos das Trevas estão por toda parte, e nenhum desses sulistas parece se importar. Lutamos para defender as Terras da Fronteira, para mantê-los a salvo em suas casas. Mas, a cada ano, apesar de tudo que conseguimos fazer, a Praga avança. E esses sulistas acham que Trollocs são lendas, que os Myrddraal são histórias de menestrel. — Ele franziu a testa e sacudiu a cabeça. — Parecia ser o único jeito. Seríamos destruídos por nada, defendendo gente que sequer sabe, que sequer se importa. Parecia lógico. Por que sermos destruídos por eles quando podemos criar nossa própria paz? Achei que era melhor a Sombra do que o esquecimento inútil, como Caralain, Hardan ou… Parecia tão lógico…
Rand segurou Ingtar pelo colarinho.
— Você não está falando coisa com coisa. — Ele não pode estar falando o que eu penso que está. Não pode . — Fale sem rodeios, diga o que quer dizer. Você está se comportando como um louco!
Pela primeira vez, Ingtar olhou para Rand. Seus olhos brilhavam com lágrimas que não caíam.
— Você é um homem melhor do que eu. Pastor ou lorde, ainda é um homem melhor. A profecia diz “Que aquele que me soar não pense na glória, apenas na salvação”. Era na minha salvação que eu estava pensando. Eu tocaria a Trombeta e lideraria os heróis das Eras contra Shayol Ghul. Com certeza isso seria o suficiente para me salvar. Nenhum homem pode andar na Sombra por tanto tempo que não possa voltar para a Luz. É o que dizem. Com certeza seria suficiente para lavar o que fui e o que fiz.
— Ó, Luz! Ingtar! — Rand o soltou e se jogou na parede do estábulo. — Eu acho… Eu acho que basta querer. Acho que tudo o que você precisa fazer é deixar de ser… um deles.
Ingtar estremeceu, como se Rand tivesse dito “Amigo das Trevas” em voz alta.
— Rand, quando Verin nos trouxe até aqui com a Pedra-portal, eu… eu vivi outras vidas. Às vezes eu carregava a Trombeta, mas nunca a tocava. Eu tentava escapar do que tinha me tornado, mas nunca conseguia. Sempre havia mais alguma exigência, e sempre pior do que a anterior, até que eu estivesse… Você estava pronto para desistir dela apenas para salvar uma amiga. Não pense na glória. Ó, Luz, me ajude…
Rand não sabia o que dizer. Era como se Egwene contasse que assassinara algumas crianças. Horrível demais para acreditar. Horrível demais para que qualquer pessoa admitisse, a menos que fosse verdade. Horrível demais.
Depois de um tempo, Ingtar voltou a falar, com a voz firme:
— Precisa haver um preço, Rand. Sempre há um preço. Talvez eu possa pagá-lo aqui.
— Ingtar, eu…
— Todo homem tem o direito, Rand, de escolher quando Embainhar a Espada. Até mesmo alguém como eu.
Antes que Rand conseguisse dizer qualquer coisa, Hurin veio correndo pela viela.
— A patrulha virou — declarou, apressado — e desceu para a cidade. Parece que estão se agrupando lá. Mat e Perrin seguiram na frente. — Ele olhou depressa para a rua e recuou. — É melhor fazermos o mesmo, Lorde Ingtar, Lorde Rand. Aqueles Seanchan com cabeça de inseto estão quase aqui.
— Vá, Rand — disse Ingtar. Ele se virou para encarar a rua e não olhar outra vez para Rand ou Hurin. — Leve a trombeta para onde é o lugar dela. Eu sempre soube que a Amyrlin deveria ter lhe deixado no comando. Mas tudo o que sempre quis foi que Shienar se mantivesse inteira, impedir que fôssemos varridos e esquecidos.
— Eu sei, Ingtar. — Rand respirou fundo. — Que a Luz brilhe sobre você, Lorde Ingtar da Casa Shinowa, e que você possa se abrigar na palma da mão do Criador. — Ele tocou o ombro do homem. — O último abraço da mãe lhe dá as boas-vindas ao lar. — Hurin ofegou.
— Obrigado — respondeu Ingtar, com a voz suave. Uma tensão pareceu abandoná-lo. Pela primeira vez desde a noite do ataque dos Trollocs em Fal Dara, ele estava como quando Rand o conheceu: con fiante e relaxado. Em paz.
Rand se virou e percebeu que Hurin os encarava.
— É hora de partir.
— Mas Lorde Ingtar…
— … fará o que precisa fazer — respondeu Rand, ríspido. — Mas nós vamos.
Hurin assentiu e Rand seguiu correndo atrás dele. Já podia ouvir os passos em marcha das botas dos Seanchan. Não olhou para trás.
47
O Túmulo Não é Limite Para o Meu Chamado
Mat e Perrin já estavam montados quando Rand e Hurin chegaram. Atrás de si, bem distante, Rand ouviu Ingtar Gritar:
— Luz e Shinowa! — O choque do aço se uniu ao clamor de outras vozes.
— Onde está Ingtar? — gritou Mat. — O que está acontecendo? — Ele amarrara a Trombeta no cepilho da sela como se fosse um instrumento qualquer, mas a adaga estava em seu cinturão. O cabo com ponta de rubi estava protegido por sua mão pálida, que parecia feita apenas de ossos e tendões.
— Ele está morrendo — disse Rand, bruscamente, subindo no dorso de Vermelho.
— Então precisamos ajudar — a firmou Perrin. — Mat pode levar a Trombeta e a adaga para…
— Ele resolveu fazer isso para que a gente possa escapar — retrucou Rand. Também foi por isso . — Vamos levar a Trombeta para Verin, e aí vocês podem ajudar a entregá-la onde quer que ela mande.
— O que você quer dizer? — perguntou Perrin.
Rand cravou os calcanhares nos flancos do baio, e Vermelho saltou rumo às colinas além da cidade.
— Luz e Shinowa! — O brado de Ingtar o perseguiu, soando triunfante, e os raios trovejaram pelo céu em resposta.
Rand estalou as rédeas em Vermelho e se inclinou junto ao pescoço do garanhão enquanto o cavalo disparava em uma corrida desabalada, crina e rabo tremulando ao vento. Queria não ter a sensação de que fugia dos brados de Ingtar, do que deveria fazer. Ingtar, um Amigo das Trevas. Não me importo. Ele ainda era meu amigo . O galope do baio não era capaz de afastar os próprios pensamentos. A morte é mais leve que a pluma. O dever, mais pesado que a montanha. Tantos deveres… Egwene. A Trombeta. Fain. Mat e a adaga. Por que não pode ser um de cada vez? Preciso cuidar de todos eles. Ah, Luz, Egwene!
Ele puxou as rédeas tão de repente que Vermelho derrapou até parar, sentado no próprio lombo. Estavam em uma área com poucas árvores, quase sem folhas, no topo de uma das colinas com vista para Falme. Os demais subiam atrás dele a galope.
— O que você queria dizer? — exigiu Perrin. — Nós podemos ajudar Verin a levar a Trombeta para onde ela deve ir? E você?
— Talvez ele já esteja enlouquecendo — sugeriu Mat. — Ele não ia querer ficar conosco se estivesse ficando louco. Não é mesmo, Rand?
— Vocês três, levem a Trombeta para Verin — mandou Rand. Egwene. Tantos fios, em tanto perigo… Tantos deveres… — Vocês não precisam de mim.
Mat acariciou o cabo da adaga.
— Sim, mas e você? Que me queime, você não pode enlouquecer ainda. Não pode!
Hurin olhava para eles boquiaberto, sem entender metade do que ouvia.
— Vou voltar — respondeu Rand. — Eu não deveria ter saído de lá. — De alguma forma, aquilo não soava muito certo em seus ouvidos, nem parecia certo em sua mente. — Preciso voltar. Agora. — Assim estava melhor. — Egwene ainda está lá, lembrem-se. E com uma daquelas coleiras no pescoço.
— Tem certeza? — perguntou Mat. — Eu não vi… Aaaah! Se você diz que ela está lá, então ela está. Vamos levar a Trombeta para Verin, depois voltamos para buscá-la. Você não acha que eu deixaria Egwene aqui, acha?
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