Embora Jeserac tentasse questionar Alvin, durante o caminho de volta à Câmara do Conselho, nada ficou sabendo a respeito de sua conversa com o Computador Central. Não se tratava apenas de discrição por parte de Alvin, ele ainda se achava demasiado perdido na maravilha do que vira, demasiado embriagado de êxito para manter qualquer conversa coerente. Jeserac teria de reunir toda a paciência possível, e esperar que Alvin saísse de seu transe.
As ruas de Diaspar estavam banhadas por uma luz que parecia pálida e mortiça após o fulgor da cidade das máquinas. Mas Alvin quase não percebia, não lançou um único olhar à beleza familiar das grandes torres que passavam por ele, ou pelos olhares curiosos de seus concidadãos. Era estranho, pensava que tudo que lhe acontecera levasse àquele momento. Desde que travara conhecimento com Khedron, os acontecimentos pareciam ter-se encaminhado automaticamente a uma meta predeterminada. Os Monitores… Lys… Shalmirane… a cada passo ele poderia ter tomado outro caminho, sem nada enxergar, mas alguma coisa o impulsionara à frente. Seria ele o autor de seu próprio caminho, ou estaria sendo especialmente favorecido pelo Destino? Talvez aquilo não passasse de uma questão de probabilidades, ou da atuação das leis do acaso. Qualquer homem poderia ter encontrado a trilha traçada por seus passos, e por vezes sem conta, nas eras passadas, outros deviam certamente ter chegado quase tão longe quanto ele. Aqueles Únicos anteriores, por exemplo… O que lhes acontecera? Talvez ele fosse simplesmente o primeiro a contar com a sorte.
Durante todo o trajeto de volta, Alvin estabelecia uma relação cada vez mais estreita com a máquina que ele libertara de uma imemorial servidão. A máquina vinha sendo capaz de receber seus pensamentos, mas até então ele não conseguira saber se ela obedecia a alguma ordem que lhe desse. Agora, terminara essa incerteza, Alvin podia conversar com ela como falaria a outro ser humano, muito embora, como não estivessem a sós, ele lhe determinasse não usar a expressão verbal, mas sim imagens mentais simples que ele pudesse entender. Às vezes Alvin ressentia-se do fato de os robôs serem capazes de conversar livremente entre si ao nível telepático, ao passo que os homens não podiam fazê-lo — exceto em Lys. Esse era outro poder que Diaspar perdera ou deliberadamente rejeitara.
Alvin continuou a conversa silenciosa, um tanto unilateral, enquanto esperava na ante-sala da Câmara do Conselho. Era impossível não comparar sua situação no momento com a que ele vivera em Lys, quando Seranis e seus colegas haviam tentado dobrá-lo às suas vontades. Esperava que não houvesse necessidade de novos conflitos, mas se surgisse algum litígio, estava agora mais preparado para enfrentá-lo.
Logo ao ver os rostos dos membros do Conselho, ele entendeu qual fora a decisão. Não ficou nem surpreso nem particularmente decepcionado, e não demonstrou qualquer sinal da emoção que os Conselheiros poderiam ter esperado, enquanto ouvia a súmula do Presidente.
— Alvin — começou o Presidente —, consideramos com enorme cuidado a situação provocada por sua descoberta, e chegamos a uma decisão unânime. Como ninguém deseja qualquer mudança em nosso modo de viver, e como apenas uma vez em muitos milhões de anos nasce alguém capaz de deixar Diaspar, e isso mesmo que exista meio de fazê-lo, o sistema de túneis para Lys é desnecessário e pode ser até um perigo. Por conseguinte, a entrada para a Câmara das Vias Móveis foi selada.
«Além disso, visto ser possível existirem outros meios para sair da cidade, será realizada uma vistoria das unidades de memória do Monitor. Essa pesquisa ja foi iniciada.»
«Levamos em consideração quais atitudes devem ser tomadas com relação a você. Tendo em vista sua juventude, e as circunstâncias especiais de sua origem, acreditamos que você não pode ser censurado pelo que fez. Na verdade, ao revelar um perigo potencial para nosso estilo de vida, você prestou um serviço à cidade, e desejamos registrar nosso apreço por esse fato.»
Houve aplausos ralos, e expressões de satisfação perpassaram pelas fisionomias dos Conselheiros. Uma situação difícil fora resolvida com rapidez, haviam evitado a necessidade de admoestar Alvin e agora poderiam voltar às suas vidas, sentindo que eles, os principais cidadãos de Diaspar, haviam cumprido com seu dever. Com sorte, poderiam passar séculos antes que fato análogo tornasse a acontecer.
O Presidente olhou Alvin, talvez esperasse que ele tomasse a palavra para exprimir seu agradecimento ao Conselho por permitir que ele se saísse tão bem da situação. Decepcionou-se, porém.
— Posso fazer um pergunta? — disse Alvin polidamente.
— Pois não.
— O Computador Central, por acaso, aprovou a decisão dos senhores?
Ordinariamente, essa teria sido uma pergunta impertinente. O Conselho não tinha por que justificar suas decisões, nem explicar como chegara a elas. Mas o próprio Alvin fora chamado à presença do Computador Central, por alguma razão que só a este dizia respeito. Por isso, encontrava-se em situação privilegiada.
A pergunta evidentemente causou algum embaraço, e a resposta foi dada com certa relutância.
— Naturalmente consultamos o Computador Central. Ele nos disse que usássemos nossos próprios critérios.
Era o que Alvin esperava ouvir. O Computador decerto estivera em consulta com o Conselho no mesmo momento em que ele, Alvin, conversava com a máquina — no mesmo momento, na verdade, em que tratava de milhões de outras tarefas em Diaspar. Sabia bem, tal como Alvin também sabia, que a decisão tomada agora não tinha qualquer importância. O futuro se colocara inteiramente fora do controle do Conselho no momento exato em que, em feliz ignorância, este decidira que a crise fora solucionada com segurança.
Alvin não sentia sensação alguma de superioridade, nenhuma doce antevisão de triunfo iminente, enquanto contemplava aqueles tolos anciões que se julgavam os governantes de Diaspar. Vira o verdadeiro governante da cidade, e falara-lhe no silêncio grave de seu mundo fulgurante e sepulto. Aquele fora um encontro que cauterizara quase toda a arrogância que havia em sua alma, mas restara-lhe ousadia suficiente para um ato final que superaria tudo quanto ocorrera antes.
Ao se despedir do Conselho, Alvin imaginava se os conselheiros não estariam admirados com sua tranqüila aquiescência, sua falta de indignação com o fechamento do caminho para Lys. Os supervisores não o acompanharam. Só Jeserac saiu com ele da Câmara do Conselho pra as ruas coloridas e apinhadas.
— Muito bem, Alvin — disse Jeserac. — Você se comportou muito bem, mas a mim não engana. O que está planejando?
Alvin sorriu.
— Eu sabia que você suspeitaria de alguma coisa, se vier comigo, mostrar-lhe-ei porque o subterrâneo para Lys não é mais importante. E há outra experiência que desejo tentar, não lhe fará mal algum, mas talvez não seja de seu agrado.
— Muito bem. Creio que ainda sou seu tutor, mas me parece que os papéis agora se inverteram. Para onde está me levando?
— Vamos à Torre de Loranne, vou-lhe mostrar o mundo fora de Diaspar.
Jeserac empalideceu, mas não deu meia-volta. Como se não confiasse na firmeza de sua voz, balançou rigidamente a cabeça e seguiu Alvin até a superfície lisa e deslizante da via móvel.
Jeserac não demostrou qualquer sinal de medo enquanto caminhavam pelo túnel através do qual o vento frio soprava eternamente sobre Diaspar. O túnel agora estava diferente, a treliça de pedra que antes bloqueava o acesso ao mundo exterior desapareceu. Não atendia a qualquer finalidade estrutural e o Computador Central a eliminara a pedido de Alvin. Mais tarde, poderia instruir aos Monitores que se lembrassem da treliça novamente, e a fizessem existir outra vez. Mas por ora o túnel abria-se às escancaras, sem proteção, sobre a parede exterior da cidade.
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