— Veja isso, Alvin — disse ele. — Creio que vamos aprender alguma coisa nova a respeito de Diaspar.
Alvin esperou pacientemente, mas nada aconteceu. A imagem da cidade flutuou ali, diante de seus olhos, com todas as suas belezas e maravilhas familiares — muito embora ele não tomasse consciência delas agora. Estava para perguntar a Khedron o que devia procurar ver quando um movimento súbito chamou sua atenção e ele voltou rapidamente a cabeça a fim de acompanhá-lo. Não tinha sido nada mais que um clarão ou brilho fugaz, e já era tarde demais para ver o que é que o tinha provocado. Nada havia mudado, Diaspar estava como ele sempre a conhecera. Então, percebeu que Khedron observava-o com um sorriso sardônico, e voltou a olhar para a cidade. Dessa vez, a coisa aconteceu diante de seus olhos.
Um dos edifícios à beira do Parque desvaneceu-se subitamente, sendo substituído por um outro, de forma inteiramente diferente. A transformação tinha sido tão rápida que se Alvin estivesse piscando o olho ele a teria perdido. Olhou, tomado de pasmo, a cidade sutilmente modificada, mas mesmo durante o primeiro choque de assombro sua mente estava procurando a resposta para aquilo. Lembrou-se das palavras que haviam aparecido na tela do Monitor —: A REGRESSÃO TERÁ INÍCIO… — e percebeu, imediatamente, o que estava acontecendo.
— Essa é a imagem da cidade há milhares de anos — ele disse a Khedron. — Estamos voltando no tempo.
— Essa é uma maneira pitoresca, mas pouco exata, de colocar a questão — disse o Bufão. — O que acontece na verdade é que o Monitor está se lembrando das primeiras versões da cidade. Quando se fizeram modificações, os circuitos de memória não foram simplesmente esvaziados. A informação que continham foi levada para unidades subsidiárias de armazenamento, de modo que pudessem ser recuperadas, sempre que necessário. Fiz com que o Monitor regressasse através dessas unidades, a uma velocidade de mil anos por segundo. Já estamos olhando para Diaspar de meio milhão de anos atrás. Teremos de ir muito além para vermos qualquer mudança importante… Vou aumentar a velocidade.
Khedron virou-se novamente para o painel de controle, e mesmo enquanto o fazia, não apenas um edifício, mas todo um quarteirão desapareceu e foi substituído por um grande anfiteatro ovalado.
— Ah, a Arena! — disse Khedron. — Lembro-me da controvérsia que houve quando decidimos dar-lhe fim. Raramente era utilizada, mas muita gente sentia amor por ela.
O Monitor estava agora despertando suas lembranças a uma velocidade muito maior. A imagem de Diaspar retrocedia no vídeo a milhões de anos por minuto, e as mudanças estavam acontecendo com tanta rapidez que o olho humano não conseguia acompanhá-las. Alvin notou que as modificações na cidade pareciam ocorrer em ciclos, havia um longo período de imutabilidade, logo após uma febre de reconstrução, seguida por nova pausa. Era quase como se Diaspar fosse um organismo vivo que tivesse de recuperar suas energias vitais após cada explosão de crescimento.
No decorrer de todas essas modificações, o projeto básico da cidade não havia mudado. Os edifícios surgiam e desapareciam, mas o traçado das ruas parecia eterno, e o Parque continuava sendo o coração verde de Diaspar. Alvin imaginou até onde o Monitor poderia recuar. Seria capaz de chegar até a fundação da cidade, e passar através do véu que separava a história conhecida dos mitos e das lendas do Alvorecer?
Já haviam retrocedido quinhentos milhões de anos no passado. Fora dos muros de Diaspar, além do conhecimento dos Monitores, haveria uma Terra diferente. Talvez existissem oceanos e florestas, ou até mesmo outras cidades que o homem ainda não houvesse abandonado na longa fuga para sua morada final.
Os minutos passavam rapidamente, representando cada um deles toda uma era no pequeno universo dos Monitores. Dentro em pouco, pensou Alvin, chegariam às mais remotas memórias estocadas e o regresso se completaria. Por mais fascinante que fosse a lição, ele não percebia como aquilo o ajudaria a sair da cidade como ela era atualmente.
Numa implosão súbita e silenciosa, Diaspar contraiu-se a uma fração de seu antigo tamanho. O Parque desvaneceu-se, os muros sumiram, torres titânicas esvaíram-se num átimo. A cidade estava aberta ao mundo, pois as estradas radicais prolongavam-se, sem obstrução, até os limites da imagem no Monitor. Ali estava a Diaspar antes da grande mudança que sobreviera à humanidade.
— Não podemos ir além — disse Khedron, apontando o vídeo. Nele haviam aparecido as palavras REGRESSÃO CONCLUÍDA. — Esta deve ser a mais antiga versão da cidade preservada nas células de memória. Antes disso, duvido que as unidades de eternidade fossem usadas e que os edifícios durassem eternamente.
Por muito tempo, Alvin fitou o modelo da cidade antiga. Pensou no tráfego que havia rolado por aqueles caminhos, nos homens que teriam andado livremente por todos os cantos do mundo — e também de outros mundos. Esses homens eram seus antepassados, sentia-se mais próximo deles, por afinidade, do que das pessoas que agora compartilhavam de sua vida. Desejou poder vê-los e partilhar de seus pensamentos nas ruas daquela Diaspar de um bilhão de anos atrás. Mas esses pensamentos não teriam sido felizes, pois nessa época os homens deviam viver sob a sombra dos Invasores. Dentro de mais alguns séculos voltariam o rosto à glória que haviam conquistado e construiriam um muro contra o universo.
Khedron dirigiu o monitor para trás e para frente umas doze vezes, pelo breve período histórico em que se dera a transformação. A mudança — de uma pequena cidade aberta para uma outra muito maior e fechada — tinha-se efetuado em pouco mais de mil anos. Nesse ínterim deviam ter sido projetadas e construídas as máquinas que ainda agora serviam a Diaspar com eficiência, e havia sido armazenado nos circuitos de memória o conhecimento que permitia àquelas máquinas desempenhar suas tarefas. Também para os circuitos de memória deviam ter tido as características essenciais de todos os homens que viviam agora, de modo que, quando o impulso adequado os chamasse de novo à vida, pudessem ser revestidos de matéria e emergissem renascidos na Casa da Criação. Em certo sentido, pensou Alvin, ele devia ter existido naquele mundo remoto. Era possível, naturalmente, que ele fosse inteiramente de homens que no passado haviam vivido e caminhado sobre a Terra.
Muito pouco da antiga Diaspar havia permanecido quando fora criada a nova cidade, o Parque a havia obliterado quase completamente. Mesmo antes da transformação tinha havido uma pequena clareira, recoberta de relva, no centro de Diaspar, cercando a junção de todas as ruas radiais. Depois essa clareira havia se expandido enormemente, tragando ruas e edifícios. Havia surgido então o Túmulo de Yarlan Zey, substituindo uma ampla estrutura circular erguida anteriormente no ponto de encontro de todas as ruas. Alvin jamais acreditara nas lendas que cercavam a antigüidade do Túmulo, mas agora elas lhe pareciam autênticas.
— Será que podemos explorar essa imagem como exploramos a imagem da Diaspar atual? — perguntou Alvin, tomado por uma idéia repentina.
Os dedos de Khedron deslizaram sobre o painel do Monitor, e a tela respondeu à pergunta de Alvin. A cidade há tanto tempo desaparecida começou a ampliar-se diante de seus olhos, enquanto o ponto de vista movia-se através de ruas curiosamente estreitas. Essa memória da Diaspar que existira no passado era ainda tão nítida e clara quanto a imagem da cidade contemporânea. Durante um bilhão de anos, os circuitos de memória haviam-na conservado numa pseudo-existência espectral, à espera do instante em que alguém a invocasse. E não se tratava, pensou Alvin, de simples memória o que ele estava vendo agora. Era alguma coisa mais complexa — era a memória de uma memória…
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