Que poderá vir a ser
O mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
Aquelle que quer valer,
Levando o caminho errado.
He para os bons confusão,
Ver que os maos prevalecêrão;
Que, pôsto se detiverão
Com esta simulação,
Sempre castigos tiverão:
Não porque governe o leme
Em mar envolto e turbado,
Que tẽe seu rumo mudado,
Se perece grita e geme
Em tempo desordenado.
Terem justo galardão,
E dor dos que merecêrão,
Sempre castigos tiverão
Sem nenhuma redempção,
Postoque se detiverão.
Na tormenta, se vier,
Desespere na bonança,
Quem manhas não sabe ter:
Sem que lhe valha gemer,
Verá falsar a balança.
Os que nunca trabalhárão,
Tendo o que lhe não convem,
Se ao innocente enganárão,
Perderão o eterno bem,
Se do mal não s'apartárão.
– oOo —
CONVITE QUE FEZ NA INDIA A CERTOS FIDALGOS
A primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataide, e dizia:
Se não quereis padecer
Huma, ou duas horas tristes,
Sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dó venistes,
Que aqui não ha que comer.
E, postoque aqui leais
Trovinha que vos enleia,
Corrido não estejais;
Porque por mais que corrais,
Não heis de alcançar a ceia.
A segunda a D. Francisco de Almeida
Heliogabalo zombava
Das pessoas convidadas;
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava,
Vinhão nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois ja não póde ser nova;
Porque a cêa está segura
De vos não vir em pintura;
Mas ha de vir toda em trova.
A terceira a Heitor da Silveira
Cêa não a papareis:
Com tudo, porque não minta,
Para beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil cousas que papeis.
E vós torceis o focinho
Com esta amphibologia?
Pois sabei que a Poesia
Vos dá aqui tinta por vinho,
E papéis por iguaria.
A quarta a João Lopes Leitão, a quem o Author fez huns versos, que vão adiante, sôbre huma peça de cacha, que deo a huma Dama
Porque os que vos convidárão
Vosso estomago não danem,
Por justa causa ordenárão,
Se trovas vos enganárão,
Que trovas vos desenganem.
Vós tereis isto por tacha,
Converter tudo em trovar;
Pois se me virdes zombar,
Não cuideis, Senhor, que he cacha,
Que aqui não ha que cachar.
Responde João Lopes
Pezar ora não de são,
Eu juro pelo Ceo bento,
Se de comer não me dão,
Qu'eu não sou camaleão,
Que m'hei de manter do vento.
Responde o Author
Senhor, não vos agasteis,
Porque Deos vos proverá;
E se mais saber quereis,
Nas costas deste lereis
As iguarias que ha.
Virado o papel, dizia assi:
Tendes nem migalha assada;
Cousa nenhuma de môlho;
E nada feito em empada;
E vento de tigelada;
Picar no dente em remôlho:
De fumo tendes taçalhos;
Ave da pena que sente
Quem da fome anda doente;
Bocejar de vinho e d'alhos;
Manjar em branco excellente.
A derradeira a Francisco de Mello
D'hum homem, que teve o scetro
Da vêa maravilhosa,
Não foi cousa duvidosa,
Que se lhe tornava em metro
O qu'hia a dizer em prosa.
De mi vos quero affirmar
Que faça cousas mais novas,
De quanto podeis cuidar;
E esta cêa, que he manjar,
Vos faça na boca em trovas.
– oOo —
NA INDIA AO VISO-REI, COM O MOTE ADIANTE
Conde, cujo illustre peito
Merece nome de Rei,
Do qual muito certo sei
Que lhe fica sendo estreito
O cargo de Viso-Rei;
Servirdes-vos d'occupar-me
Tanto contra meu Planeta,
Não foi senão azas dar-me,
Com as quaes vou a queimar-me,
Como o faz a borboleta.
E s'eu a penna tomar,
Que tão mal cortada tenho,
Será para celebrar
Vosso valor singular
Dino de mais alto engenho.
Que se o meu vos celebrasse,
Necessario me sería
Que os olhos d'aguia tomasse,
Só para que não cegasse
No sol de vossa valia.
Vossos feitos sublimados
Nas armas, dignos de gloria,
São no mundo tão soados,
Qu'em vós de vossos passados
Se resuscita a memoria.
Pois aquelle ânimo estranho,
Prompto para todo effeito,
Espanta todo o conceito:
Como coração tamanho
Vos póde caber no peito?
A clemencia, que asserena
Coração tão singular,
S'eu nisso puzesse a penna,
Sería encerrar o mar
Em cova muito pequena.
Bem basta, Senhor, que agora
Vos sirvais de me occupar;
Que assi fareis aparar
A penna, com que algum'hora
Vos vereis ao ceo voar.
Assi vos irei louvando,
Vós a mi do chão erguendo,
Ambos o mundo espantando;
Vós com a espada cortando,
Eu com a penna escrevendo.
Mote que lhe mandou o Viso-Rei
Muito sou meu inimigo,
Pois que não tiro de mi
Cuidados, com que nasci,
Que põe a vida em perigo.
Oxalá que fôra assi!
Volta
Viver eu, sendo mortal,
De cuidados rodeado,
Parece meu natural;
Que a peçonha não faz mal
A quem foi nella criado.
Tanto sou meu inimigo,
Que por não tirar de mi
Cuidados, com que nasci,
Porei a vida em perigo.
Oxalá que fôra assi!
Tanto vim a accrescentar
Cuidados, que nunca amansão
Em quanto a vida durar,
Que canso ja de cuidar
Como cuidados não cansão.
S'estes cuidados, que digo,
Dessem fim a mi e a si,
Farião pazes comigo;
Que pôr a vida em perigo,
O bom fôra para mi.
– oOo —
A HUMA DAMA, QUE LHE MANDOU PEDIR ALGUMAS OBRAS SUAS
Senhora, s'eu alcançasse
No tempo que ler quereis,
Que a dita dos meus papéis
Pola minha se trocasse;
E por ver
Tudo o que posso escrever
Em mais breve relação,
Indo eu onde elles vão,
Por mi só quizesseis ler;
Despois de ver hum cuidado
Tão contente de seu mal,
Verieis o natural
Do que aqui vêdes pintado;
Que o perfeito
Amor, de que sou sogeito,
Vereis aspero e cruel,
Aqui com tinta e papel,
Em mi com sangue no peito.
Que hum continuo imaginar
Naquillo que Amor ordena,
He pena, que emfim por penna
Se não póde declarar;
Que se eu levo
Dentro n'alma quanto devo
De trasladar em papéis,
Vêde que melhor lereis,
Se a mi, se aquillo qu'escrevo?
– oOo —
A HUMA SENHORA, A QUEM DERÃO HUM PEDAÇO DE SITIM AMARELLO
Se derivais da verdade
Esta palavra Sitim ,
Achareis sem falsidade,
Que apos o si tẽe o tim ,
Que tine em toda a Cidade.
Bem vejo que m'entendeis;
Mas porque não falle em vão,
Sabei que a esta Nação
Tanto que o si concedeis,
O tim logo está na mão.
E quem da fama s'arreda,
Que tudo vai descobrir,
Deve sempre de fugir
De sitins, porque da seda
Seu natural he rugir.
Mas panno fino e delgado,
Qual a raxa e outros assi,
Dura, aquenta, e he callado,
Amoroso, e dá de si
Mais que sitim , nem brocado.
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