Júlio Dinis - A Morgadinha dos Cannaviaes

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A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se estreitos e longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão ardente, que se o pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria, ao passal-o á tela, com receio de que o acoimassem de exaggerado. O verde dos campos apresentava a gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de inverno costuma dar-lhe.

Christina interrompeu o silencio por fim.

– O que eu não sei – principiou ella – é como o primo Henrique de Souzellas…

– Onze! – atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto da perspectiva, que fitava.

– Onze quê? – perguntou Christina, erguendo os d'ella.

– Com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um longo silencio, abres a bôca para me falares no primo Henrique de Souzellas, uma vez que está decidido que seja primo.

Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.

– E então que queres dizer com isso?

– Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.

– Não sabia que era prohibido falar-te no primo Henrique. Bem, n'esse caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito: nem parece dezembro.

– Não; vae magnifico para os nabaes – replicou Magdalena zombeteiramente.

– Se não mudar com a nova lua – continuou Christina, ainda formalisada.

– É excellente para seccar os milhos, que bem precisavam ainda d'isso, principalmente os das terras baixas.

E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

– Não sei de que te ris! – acudiu Christina, cada vez mais séria. – Pois não é esta a conversa de que tu gostas?

– Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de lavoura; bem sabes. – E, mudando repentinamente de tom, accrescentou: – Ora vamos, Christe; não te zangues commigo.

– Não, mas é que ás vezes não te entendo, a falar verdade. Vens com umas coisas que mettem raiva – respondeu-lhe Christina, sempre agastada.

– Já estou arrependida; peço perdão. Fala lá á tua vontade no primo Henrique, fala; que eu não contarei as vezes que o fizeres.

Christina reproduziu o gesto de impaciencia.

– Agradeço a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer d'elle agora; por isso…

– Pelo menos completa a duzia.

– Lena! Então! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair d'aqui.

– Sempre queria que te vissem agora, Christe, esses que andam por ahi a gabar a docilidade do teu genio, as branduras da tua indole; queria que te vissem essa cara arrenegada, para saberem que tambem ha um acidozinho na tal doçura… Mas fazes-me a graça de só para mim teres d'essas franquezas.

Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão da prima.

– E não sabes a razão d'isso? – respondeu-lhe ella – a razão é o genio que tens, Lena. O teu gôsto é mortificares uma pessoa. Não ha santo que não perdesse a paciencia comtigo.

– Que injustiça! que ingratidão! Eu, que sou a victima das tempestades que o teu genio pouco expansivo te junta no coração a todo o instante! Se alguma coisa te faz chorar, guardas as lagrimas para o meu quarto; se te irritam, vens desafogar as tuas cólerazinhas sobre a minha cabeça. E pagas-me assim!

– És muito infeliz commigo. Pobre Lena!

– Vamos, vamos, Christe! esquece o que eu disse ha pouco. Não te posso vêr assim. – E tomando um tom natural, mas sob o qual transparecia ainda certa malicia, Magdalena continuou: – Pois é verdade, dizias tu que não sabias por que o primo Henrique de Souzellas…

Christina fez um movimento impaciente, como para levantar-se.

– Então que é isso? Não me acceitas a expiação? – perguntou Magdalena, sorrindo.

– Não; não quero que se fale mais no sr. Henrique de Souzellas. Vejo que te não é agradavel que as outras se occupem d'elle. Sejam quaes forem as razões que tens para isso…

– Bravo! Foi admiravel de maldade o entono com que disseste esse: «Sejam quaes forem as razões.» E venham-me falar na candura d'esta creança!

– Eu não quero dizer…

– O que queres dizer, não sei; mas vejo que não és senhora tua quando se fala n'este assumpto.

– Que lembrança! – tornou Christina, cada vez mais embaraçada – pois imaginas devéras que eu?..

– E por que não?

– Lena!

– Não ha nada mais natural.

– Se queres, juro-te…

– Ah! atalhou a morgadinha, pondo-lhe a mão nos labios. – Isso não, que é mais sério. Jurar não te deixo eu. Conheço os escrupulos da tua consciencia, e não quero obrigar-te a remorsos. «Juro!» E com que ousadia ias pronunciar um juramento falso!

– Falso!

– Falso, sim; falso como os que o são. Olha, minha pobre Christe, queres então que te fale com toda a franqueza? Esta conversa trouxe-a eu de proposito para confirmar umas suspeitas, que se me formaram e que vejo agora que eram fundadas.

– Suspeitas! que suspeitas?..

– O primo Henrique de Souzellas deixou em ti uma tal ou qual impressão.

– Lena!

– Conheci isso ainda quando elle cá estava; verifiquei-o depois e agora. Então! tem juizo. Commigo sê sempre o que tens sido. Eu góso ha muito do privilegio de conversar á vontade comtigo e de te vêr sem aquella timidez que tens deante dos outros. Com o teu genio, precisas de uma pessoa, como eu, com quem não tenhas acanhamento e em quem possas até descarregar algumas maldadezitas; e acredita que me lisonjeio com me dares a preferencia.

– Mas como imaginaste?..

– Continuas? Não tens de que te envergonhar pelo interesse que por ventura te inspirou esse rapaz. Henrique de Souzellas é elegante, é espirituoso, affavel, possue uma intelligencia cultivada e muito trato do mundo…

– Mas…

– Faça favor de me ouvir – atalhou Magdalena, pondo um dedo nos labios. Reconhecendo todas essas qualidades n'aquelle nosso primo, não quero por isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te já. E nem receio que isso aconteça, para te falar sinceramente, porque te conheço o genio timido e porque… porque te conheço o genio timido e mais nada.

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