Tentei olhar na mesma direção que o cachorro para ver se conseguia descobrir o bando, mas estava escuro demais. O grasnar foi chegando cada vez mais perto, até que parecia que eles deviam estar voando bem por dentro do dormitório, bem em cima da minha cabeça. Então atravessaram o luar – um colar negro ondulante, armado como um V, na frente o ganso líder. Por um instante o líder ficou bem no centro do círculo, maior do que os outros, uma cruz negra se abrindo e fechando. Depois, ele tirou o seu V do ponto em que ficava à vista e foi novamente para dentro do céu.
Eu os ouvi irem – afastando-se, até que tudo que podia ouvir era a lembrança do som. O cachorro ainda pôde ouvi-los por muito tempo depois de mim: ainda se mantinha de pé com a pata levantada; não se tinha movido nem latido quando eles passaram. Quando ele também não pôde mais ouvi-los, começou a correr na direção em que eles se tinham ido, na direção da estrada, trotando num passo regular e solene, como se tivesse um encontro. Prendi a respiração e consegui ouvir o bater das suas patas na grama enquanto ele ia trotando; então ouvi um carro fazer uma curva a toda velocidade. Os faróis surgindo gradualmente sobre a ladeira e iluminando a estrada adiante. Observei o cachorro e o carro que se dirigiram para o mesmo ponto no asfalto.
O cachorro estava quase atingindo a cerca de arame, na extremidade do terreno, quando senti alguém atrás de mim. Duas pessoas. Não me virei, mas sabia que era o crioulo, chamado Geever, e a enfermeira com a marca de nascença e o crucifixo. Senti o começo de um zumbido de medo na minha cabeça. O crioulo segurou meu braço e me puxou, fazendo com que me virasse.
– Está frio aí na janela, Sr. Bromden – disse-me a enfermeira. – Não acha que é melhor voltar para a sua cama gostosa?
– Ele não escuta – disse-lhe o crioulo. – Eu o levo. Ele está sempre desamarrando o lençol e rodando por aí.
E eu me movo e ela dá um passo para trás e diz:
– Sim, por favor, leve-o.
Está mexendo na corrente que traz em volta do pescoço. Em casa, ela se tranca no banheiro, onde ninguém a vê, tira a roupa e esfrega aquele crucifixo por toda aquela mancha que desce do canto de sua boca, numa linha fina, pelos ombros e seios. Ela esfrega, esfrega e implora a Maria que faça um milagre, mas a mancha fica. Ela olha no espelho e vê que está mais escura do que nunca. Finalmente, pega uma escova de arame, usada para raspar a tinta dos barcos, e esfrega a mancha eté que desapareça, põe uma camisola sobre a pele esfolada e gotejante e vai para a cama.
Mas ela está cansada demais daquele negócio. Enquanto dorme, ele sobe pela sua garganta, escorre por aquele canto da boca como um cuspe vermelho e lhe desce pelo pescoço sobre o corpo. De manhã, ela vê como está manchada de novo e de alguma maneira imagina que realmente aquilo não vem de dentro dela – como poderia? uma boa moça católica como ela? – e conclui que é porque trabalha durante a noite numa enfermaria cheia de gente como eu. É tudo por nossa culpa, e ela vai vingar-se de nós por causa disso, nem que seja a última coisa que faça. Gostaria que McMurphy acordasse e me ajudasse.
– Amarre-o na cama, Sr. Geever, e eu vou preparar uma medicação.
* * *
Nas Sessões de Grupo estavam surgindo rompantes de mau humor que haviam ficado reprimidos durante tanto tempo que se reclamava de coisas que já haviam sido até modificadas. Agora que McMurphy estava ali para apoiá-los, todos começaram a reclamar de todas as coisas que já haviam acontecido na ala e de que eles não gostaram.
– Por que é que os dormitórios têm de ficar trancados durante os fins de semana? – perguntava Cheswick, ou alguma outra pessoa. – Será que um cara não pode nem ter os fins de semana para si mesmo?
– Sim, Srta. Ratched – diria McMurphy. – Por quê?
– Se os dormitórios forem deixados abertos, nós já aprendemos por experiências anteriores, vocês todos voltariam para a cama depois do café.
– E isso é um pecado mortal? Quero dizer, gente normal costuma dormir até tarde nos fins de semana.
– Vocês estão aqui neste hospital – dizia ela como se estivesse repetindo aquilo pela centésima vez – por causa da incapacidade comprovada de se ajustarem à sociedade. O médico e eu acreditamos que cada minuto passado na companhia de outras pessoas, com algumas exceções, é terapêutico, enquanto que cada minuto passado remoendo as coisas, sozinhos, apenas aumenta o isolamento de vocês.
– É por essa razão que tem de haver pelo menos oito caras reunidos antes que possam ser levados para fora da ala para a Terapia Ocupacional ou para a Terapia de Psicologia ou para qualquer outra das Terapias?
– Exatamente.
– Quer dizer que é doença querer estar sozinho?
– Eu não disse que…
– Quer dizer que, se eu for ao banheiro para me aliviar, eu devo levar junto pelo menos uns sete companheiros, para me impedirem de ficar remoendo os pensamentos sentado no vaso?
Antes que ela pudesse responder àquilo, Cheswick se levantava de um salto e gritava para ela:
– Sim, é isso o que quer dizer?
E os outros Agudos, sentados ali em volta, participando da sessão, começavam a perguntar:
– Sim, sim, é isso o que quer dizer?
Ela esperava até que todos eles se acalmassem e a sessão ficasse novamente tranqüila. Então, dizia com calma:
– Se vocês puderem acalmar-se o bastante de forma a se comportarem como um grupo de adultos numa discussão, em vez de crianças num playground, perguntaremos ao médico se ele acha que seria benéfico pensarmos numa mudança na rotina. Doutor?
Todo mundo sabia o tipo de resposta que o médico daria e, antes mesmo que ele tivesse uma oportunidade, Cheswick disparava com uma outra reclamação.
– Então como é que ficam os nossos cigarros, Srta. Ratched?
– Sim, como é que ficam? – ecoavam os Agudos. McMurphy virou-se para o médico e fez a pergunta diretamente a ele, dessa vez, antes que a enfermeira tivesse uma oportunidade de responder.
– Sim, doutor, como é que ficam os nossos cigarros? Como é que ela tem o direito de ficar com os nossos cigarros. Nossos cigarros, empilhados na mesa dela como se fosse a dona deles, dando-nos um maço de vez em quando, quando tem vontade. Não gosto muito da idéia de comprar um pacote de cigarros e de ter alguém me dizendo quando é que posso fumá-los.
O médico virou a cabeça de forma a poder olhar para a enfermeira através dos óculos. Ele não sabia que ela se havia apossado dos cigarros extras para acabar com o jogo.
– Que é que há a respeito de cigarros, Srta. Ratched? Não creio que tenha tomado conhecimento…
– Doutor, eu acho que três, quatro e às vezes cinco maços de cigarros por dia são absolutamente demais para um homem fumar. Foi isto que pareceu estar acontecendo na semana passada, depois da chegada do Sr. McMurphy, e foi por isso que eu achei que talvez fosse melhor apreender os pacotes que os homens compram na cantina e distribuir apenas um maço por dia para cada homem.
McMurphy inclinou-se para a frente e cochichou alto para Cheswick:
– Vai ouvir dizer que a próxima decisão dela será a respeito das idas à latrina; não apenas um cara tem de levar sete companheiros para o banheiro junto com ele, mas também está limitado a duas idas por dia, que vão acontecer quando ela disser que pode.
E tornou a se recostar na cadeira e riu tanto que mais ninguém pôde dizer coisa alguma durante quase um minuto.
McMurphy se estava divertindo um bocado com o tumulto todo que estava criando, e acho que fiquei um pouco surpreendido porque ele não estava sendo alvo, também, de muita pressão do pessoal, especialmente surpreendido de que a Chefona não tivesse mais nada a lhe dizer senão o que lhe dizia. "Eu pensei que aquela velha escrota fosse mais dura na queda do que está sendo", disse ele a Harding depois de uma sessão. "Talvez tudo de que ela precisasse para endireitá-la fosse uma boa derrubada. O negócio é que – ele franziu o cenho – ela age como se ainda estivesse com todas as cartas escondidas naquela sua manga branca."
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