Os motores da astronave, ajustados para a navegação dentro do sistema solar, transmitiam o clássico e reconfortante zumbido bifásico. Para seus ouvidos treinados, o som confirmava que tudo estava funcionando perfeitamente. Com sua sensibilidade auditiva, seria capaz de perceber uma variação nas salas de câmbio de apenas 0,0001 Lasig, bem antes que o sofisticadíssimo sistema de controle automatizado. Por isso lhe fora concedido, já em idade jovem, o comando de uma astronave da classe Pegasus.
Muitos fariam absolutamente qualquer coisa para estar no posto dele. Mas lá estava ele.
O implante intraocular O^OCM fez com que a nova rota recalculada se materializasse à sua frente. Era notável como um objeto de apenas alguns mícrons podia executar todas aquelas funções. Inserido diretamente no nervo ótico, era capaz de exibir um painel de controle inteiro, sobrepondo-se à imagem que na realidade estava à sua frente. No início, não fora fácil se acostumar com aquele dispositivo e mais de uma vez não conseguira conter a náusea. Agora, no entanto, não podia trabalhar sem ele.
O sistema solar inteiro girava em torno dele com toda a sua fascinante magnificência. O pequeno ponto azul perto do gigante Júpiter representava a posição da sua astronave, e a linha vermelha fina e curvada um pouco mais que a anterior agora transparente, indicava a nova trajetória em direção à Terra.
A atração gravitacional do maior planeta do sistema era alarmante. Era essencial ficar a uma distância segura e somente a potência dos dois motores Bousen permitiria a Theos escapar do abraço mortal.
— Azakis — resmungou o comunicador portátil sobre o painel de comando à sua frente. — Devemos verificar a condição das conexões no compartimento seis.
— Você ainda não fez isso? — respondeu em tom de brincadeira, sabendo que enfureceria o seu amigo.
— Jogue fora esse charuto fedorento e venha me dar uma mão! — Petri bradou.
Eu sabia.
Conseguira irritar o amigo e estava se divertindo à beça.
— Aqui estou, aqui estou. Estou a caminho, meu amigo, não fique exaltado.
— Vamos, estou no meio desta porcaria há quatro horas e não estou a fim de brincadeiras.
Resmungão como sempre. Porém, nada nem ninguém seria capaz de separá-los.
Eles se conheciam desde a infância. Petri o tinha salvado mais de uma vez de uma surra certa (sempre fora muito maior do que os outros, desde criança), intervindo com o seu tamanho respeitável entre seu amigo e a turma habitual de valentões, da qual ele fora alvo com frequência.
Quando menino, Azakis não sabia se era o tipo pelo qual os membros mais atraentes do sexo oposto brigariam para ter. Vestia-se sempre bastante desalinhado, com a cabeça raspada, magricela e sempre conectado à Rede 5, da qual absorvia um número vasto de informações a uma velocidade dez vezes superior à média. Com dez anos, graças ao seu excelente desempenho acadêmico, obtivera um acesso de nível C, com a opção de adquirir conhecimento que não estava disponibilizado para a maioria de seus pares. O implante neural N^OCM que garantia aquele tipo de acesso, no entanto, tinha alguns pequenos efeitos colaterais. Durante a fase de aquisição, a concentração tinha de ser absoluta, e uma vez que passava a maior parte do seu tempo assim, tinha quase sempre uma expressão ausente, com o olhar perdido, isolado de tudo o que acontecia ao seu redor. Na verdade todos acreditavam que, ao contrário do que diziam os Anciãos, ele fosse meio retardado.
Ele nunca se importou com isso.
Sua sede de conhecimento não tinha limites. Mesmo durante a noite permanecia conectado, e embora durante o sono a capacidade de aquisição, por causa da necessidade de concentração absoluta, fosse reduzida misteriosamente para 1%, não queria perder nem um segundo da sua vida sem aproveitar a oportunidade de desenvolver a própria bagagem cultural.
Acordou com um leve sorriso e foi em direção ao compartimento seis, onde seu amigo o estava esperando.
Planeta Terra Tell El-Mukayyar Iraque
Elisa Hunter estava tentando pela enésima vez enxugar as malditas gotas de suor que, da sua testa, teimavam em cair lentamente na direção do seu nariz, e em seguida, mergulhar na areia quente aos seus pés. Já havia muitas horas que estivera de joelhos, com a sua inseparável Espátula Marshalltown 6, raspando delicadamente o solo, na tentativa de trazer à luz, sem danos, aquela que parecia ser a parte superior de uma lápide. Desde o começo, essa teoria não a tinha convencido. Estivera trabalhando por quase dois meses perto do Zigurate de Ur. 7Graças a sua fama de arqueóloga e especialista em língua sumeriana, tinham lhe dado permissão para trabalhar. Muitas sepulturas foram encontradas desde o começo das escavações no início do séc. XX, mas em nenhuma delas tinham visto um artefato como aquele. Dada a forma quadrada particular e o grande porte, maior que um sarcófago, parecia a "tampa" de uma espécie de recipiente enterrado ali milhares de anos antes, para proteger ou esconder não se sabia o quê.
Infelizmente tendo descoberto, pelo momento, apenas uma porção da parte superior, ainda não era capaz de determinar a altura do suposto recipiente. As incisões cuneiformes que cobriam toda a superfície visível da tampa não se assemelhavam a nada que já tivesse visto antes.
Para traduzir, levaria vários dias e muitas noites sem dormir.
— Doutora.
Elisa levantou a cabeça, e com a mão direita logo acima dos olhos para protegê-los do sol, viu o seu ajudante Hisham se apressando em sua direção.
— Doutora — repetiu o homem — uma chamada para você da base. Parece urgente.
— Já vou. Obrigada Hisham.
Aproveitou a pausa forçada para beber um gole de água, já quase fervendo, do cantil que ela sempre levava preso ao cinto.
Uma chamada da base… Só pode ser problema.
Levantou-se, deu uns tapas nas calças levantando várias nuvens de poeira e caminhou determinada para a tenda que servia de base de apoio para pesquisas.
Ela abriu o zíper que mantinha a tenda semifechada e entrou. Demorou um pouco para seus olhos se habituarem à mudança de luz, mas isso não a impediu de reconhecer, no monitor, o rosto do Coronel Jack Hudson, que severamente, olhava para o nada, esperando ela aparecer.
O Coronel era oficialmente responsável pela equipe estratégica antiterrorismo em Nassíria, mas a sua verdadeira tarefa era coordenar uma série de estudos científicos encomendados e controlados por um departamento enigmático: o ELSAD 8. Esse departamento era cercado pela aura de mistério que normalmente envolve esse tipo de corporação. Quase ninguém sabia exatamente os objetivos precisos e as metas dessa organização. Sabia-se apenas que o comando operacional reportava diretamente ao Presidente dos Estados Unidos.
No fundo, Elisa não se importava muito. A verdadeira razão pela qual ela tinha decidido aceitar a oferta de participar de uma das expedições era que, finalmente, poderia voltar para o lugar que mais amava no mundo, fazendo o trabalho que adorava e em que, apesar da sua idade relativamente jovem (trinta e oito), era uma das mais talentosas e importantes no setor.
— Boa noite, Coronel — disse ela, mostrando o seu melhor sorriso. — A que eu devo esta honra?
— Doutora Hunter, pare com essas pieguices. Sabe muito bem por que estou ligando. A autorização que foi concedida para completar o seu trabalho já expirou há dois dias e a senhora não pode mais ficar aí.
Sua voz era clara e firme. Desta vez, nem mesmo o seu charme inegável seria suficiente para arrancar um adiamento. Decidiu jogar sua última cartada.
Desde 23 de março de 2003, quando a coalizão liderada pelos Estados Unidos havia decidido invadir o Iraque, com o propósito expresso de depor o ditador Saddam Hussein, acusado de manter armas de destruição em massa (alegação que se revelou infundada depois) e de apoiar o terrorismo islâmico no Iraque, toda a pesquisa arqueológica, já muito difícil em tempos de paz, havia sofrido uma parada forçada. Foi apenas com o fim formal das hostilidades em 15 de Abril de 2003 que reanimou a esperança de arqueólogos de todo o mundo de poderem voltar aos lugares em que, presumivelmente, as civilizações mais antigas da história tinham se desenvolvido e em seguida, espalhado a cultura em todo o globo. A decisão das autoridades iraquianas no final de 2011 de reabrir as escavações de alguns dos locais com valor histórico inestimável, a fim de "continuar a aperfeiçoar a sua herança cultural" finalmente transformou a esperança em certeza. Sob a bandeira da ONU e com inúmeras autorizações assinadas previamente e confirmadas por um número incontável de "autoridades", vários grupos de pesquisadores, selecionados e supervisionados por funcionários competentes da comissão, poderiam operar por períodos limitados, nas áreas arqueológicas mais significativas do território iraquiano.
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