6Instituto AMMA Psique e Negritude – deus AMMA, espírito fecundador, verbo original, inaugurador de todas as coisas – é simbolizado por um pote envolto por uma espiral de cobre vermelho em três voltas. É uma organização não governamental cuja atuação é pautada pela convicção de que o enfrentamento do racismo, da discriminação e do preconceito se faz necessariamente por duas vias: politicamente e psiquicamente.
Foi fundado em 1995 por um grupo de psicólogas e ativistas, comprometidas e familiarizadas com o enfrentamento político, que constataram que somente a via política não seria suficiente. Desde então, o Instituto tem buscado, por meio de formação e prática clínica, identificar, elaborar e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais. Ver: http://www.ammapsique.org.br/.
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INTRODUÇÃO
O opressor tem que ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, está preso atrás das grades do preconceito e da pobreza de espírito. Ser livre não significa apenas se livrar de suas algemas, mas sim viver de uma maneira que respeite e reforce a liberdade dos outros (MANDELA, 2012, citação no Prefácio).
Ao introduzirmos os diversos pensamentos implicados nesta escrita, revelamos que o pensamento não está envolvido na separação mente-corpo, indivíduo-sociedade. A subjetividade se entrelaça com a objetividade. Esse posicionamento baseado no pensamento dialético possibilita reunir o sistema político, social, econômico e psíquico, que se enredam produzindo movimento, bem como possibilita buscar modificação mútua no inter-relacional e no interior de cada um.
O histórico social faz ancoragem na vida psíquica humana, no seu modo de pensar e agir. Necessidades podem ser manipuladas pela linguagem e, segundo os interesses do sistema vigente, estão carregadas de significados, com seus valores transmissores de ideias e intenções de determinada ordem social. Estamos muito distantes da natureza baseada na subsistência. Comunidades indígenas e quilombolas estabelecem uma relação mais integrada e respeitosa com a terra, pautada na lógica coletiva, numa prática comunitária com base na subsistência. Nós vivemos desenraizados, numa sociedade do cansaço, priorizando ter a posse e o poder sobre a terra, e não afirmamos que somos pertencentes da terra.
[...] As enfermidades psíquicas são a consequência do caos sexual da sociedade. Durante milhares de anos, esse caos tem tido a função de sujeitar psiquicamente o homem às condições dominantes de existência e de interiorizar a dinâmica externa da vida. Tem ajudado a efetuar a ancoragem psíquica de uma civilização mecanizada e autoritária, tornando o homem incapaz de agir independentemente (REICH, 1975, p. 14).
Nossa sensopercepção vem do próprio corpo e do encontro com o corpo do outro. Informações como emoções, sentimentos e razão possuem sede localizada em áreas determinadas do cérebro, como o córtex, a amígdala e o hipocampo. São regiões importantes do sistema límbico que se interligam e são responsáveis pelo processamento das emoções e memória, e que interagem com as dinâmicas sociais complexas e o raciocínio lógico. No entanto, aprendemos em nossa cultura desde cedo a separar a razão da emoção, como se elas fossem incompatíveis, isolando o social do indivíduo. Não são apenas nossas experiências cinestésicas (aquelas ligadas à memória corporal) que nos levam à consciência de quem somos, mas também a linguagem verbal, as anedotas, os gestos, as reações. Todos são elementos que contribuem para delimitar o corpo num determinado comportamento. Essas reflexões são analisadas no livro Silvia Lane (LANE; COELHO; LIMA; SAWAIA, 2018, p. 21-24).
As justificativas falaciosas do sistema colonizador usaram do conceito de inferioridade para separar negros e nativos (emocionais) do branco (racionais) e para implantar a dominação. No mínimo, houve uma concepção do indígena como primitivo e ingênuo e do negro como inferior e submisso, em oposição ao branco como superior, dotado de razão, intelectualidade e beleza.
Não somos opostos e nem deveríamos ser hierarquizados racialmente. As singularidades são fonte de enriquecimento. A grandeza da natureza e da sobrevivência está na diversidade e na sua interação. Segundo a maioria dos cientistas, a hipótese sobre a origem da existência humana tem um único lugar, o continente africano, posteriormente migrando para outros continentes. Outros sustentam a ideia de que a evolução ocorreu em regiões separadas. Entretanto, acompanhamos a pesquisa do Dr. Yuval Noah Harari, doutor em história, em seu best-seller Sapiens – uma breve história da humanidade, no qual apresenta a seguinte cronologia:
2,5 milhões - Evolução do gênero Homo na África. Primeiras ferramentas de pedra.
2 milhões – Humanos se espalham na África para a Eurásia. Evolução de diferentes espécies humanas.
500 mil – Surgem os neandertais na Europa e no Oriente Médio.
300 mil – Uso cotidiano do fogo.
200 mil – surge o Homo sapiens na África Oriental.
70 mil – Revolução Cognitiva. Surge a linguagem ficcional. Começo da história. Os sapiens se espalham a partir da África (HARARI, 2016, p. 7).
Na escravidão, na intenção de “domesticar”, os corpos negros, assim como ocorreu com os povos originários, passaram a se tornar mercadoria produtiva. Destituído de sua humanidade, seu corpo humano sofreu as consequências da violência traumática imposta por séculos, gerando reações emocionais e ações defensivas de sobrevivência.
O mito da democracia racial no Brasil, de um povo conhecido e admirado por sua (suposta) cordialidade entre “os diferentes”, vem caindo por terra. O véu que encobria o preconceito e a discriminação em nossa sociedade vem sendo desvendado nos últimos tempos. A fúria do pensamento racista, as ideias destrutivas da homofobia e o desprezo por mulheres e indígenas saíram do fosso, da lama em que se escondiam, pois continuamos como nas guerras das conquistas, atuando por meio da violência e da manifestação de poder.
Como ideologia, a formação da sociedade brasileira foi construída na oposição e na singularidade mediante uma diferença hierarquizada, além da utilização da violência como um marcador de controle, o que é reproduzido até os dias atuais. A sociedade relacional e institucional brasileira foi moldada nesse pensamento de segregação e se comporta conforme essa condição.
Portanto, essa história não diz respeito apenas aos negros e aos indígenas, como muitos pensam. Não há unilateralidade. O racismo segrega, desmembra o corpo negro na tentativa de ele negar a si mesmo. Dita espaços que privilegiam grupos e, com isso, eleva a desigualdade social e econômica, reproduz a hierarquia racial e limita oportunidades, sem haver possibilidade de mudança. Resulta ser necessário negros e brancos brasileiros lidarem com esse desconforto no plano político e na posição subjetiva, encararem a realidade do passado e seus modos atuais. Não foram apenas os antepassados de mercadores e de escravizados que viveram diretamente essa realidade; nós todos somos impactados e implicados quando reproduzimos esse comportamento, crivando nosso olhar para o negro na condição de inferiorizado e para o branco na condição de superioridade e poder.
É um desafio denunciar o racismo, pois muitos não desejam a mudança com relação a esse fato. No entanto, como afirma Stengel a partir do pensamento de Nelson Mandela:
Ninguém nasce preconceituoso ou racista. Nenhum homem, ele sugere, é mal no coração. O mal é algo instalado ou ensinado aos homens pelas circunstâncias, pelo meio ambiente ou pela formação. Não é inato. O apartheid tornou os homens maus; o mal não criou o apartheid (STENGEL, 2010, p. 79).
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