Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Mártires.
No entanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miúdo e amarelado; nunca dava uma boa risada; trazia sempre as mãos nos bolsos. Estava constantemente metido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bulia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancá-lo a uma sonolência doentia em que ficava amolecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca .
Num domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marquesa de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joana, entrasse aos quinze anos no seminário e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realizar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze anos.
As filhas da senhora marquesa deixaram logo Carcavelos e foram para Lisboa, para a casa da Sra. D. Bárbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrela. O merceeiro era um homem obeso, casado com a filha dum pobre empregado público, que o aceitara para sair da casa do pai, onde a mesa era escassa, ela devia fazer as camas e nunca ia ao teatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabeludas, a loja, o bairro, e o seu apelido de Sra. Gonçalves. O marido, esse adorava-a como a delícia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de jóias e chamava-lhe a sua duquesa .
Amaro não encontrou ali o elemento feminino e carinhoso, em que estivera tepidamente envolvido em Carcavelos. A tia quase não reparava nele; passava os seus dias lendo romances, as análises dos teatros nos jornais, vestida de seda, coberta de pó-de-arroz, o cabelo em cachos, esperando a hora em que passava debaixo das janelas, puxando os punhos, o Cardoso, galã da Trindade. O merceeiro apropriou-se então de Amaro como duma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo às cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando à pressa o pão na chávena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro . Pesava-lhes até o magro pedaço de vaca que ele comia ao jantar. Amaro emagrecia, e todas as noites chorava.
Sabia já que aos quinze anos devia entrar no seminário. O tio todos os dias lho lembrava:
— Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro. Em tendo quinze anos, é para o seminário. Não tenho obrigação de carregar contigo! Besta na argola, não está nos meus princípios!
E o rapaz desejava o seminário, como um libertamento.
Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente dominável, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava ser padre . Desde que saíra das rezas perpétuas de Carcavelos conservara o seu medo do Inferno, mas perdera o fervor pelos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marquesa, pessoas brancas e bem tratadas, que comiam ao lado das fidalgas, e tomavam rapé em caixas de ouro; e convinha-lhe aquela profissão em que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala baixo com as mulheres, — vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante, — e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um anel de rubi no dedo mínimo; monsenhor Saavedra com os seus belos óculos de ouro, bebendo aos goles o seu copo de Madeira. As filhas da senhora marquesa bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia, viajara, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a água-de-colônia, apoiadas ao castão de ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em êxtase e cheias dum riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bela voz:
Mulatinha da Baia,
Nascida no Capujá...
Um ano antes de entrar para o seminário, o tio fê-lo ir a um mestre para se afirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existência, Amaro possuiu liberdade. Ia só à escola, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exército de infantaria, espreitou às portas dos cafés, leu os cartazes dos teatros. Sobretudo começara a reparar muito nas mulheres — e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escola, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrela. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janelinha num vão sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa, que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gás: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrasados de luz, e mulheres que arrastam ruge-ruges de sedas pelos peristilos dos teatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente apareciam-lhe no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao ombro... Mas embaixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ela, ou estar a um canto a vê-la escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas vielas, de saias engomadas e ruidosas, passeando em cabelo, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu ser, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguém, de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
— Então tu não estudas, mariola?
E daí a pouco, sobre o Tito Lívio cabeceando de sono, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o dicionário.
Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar . Já as convivências da escola tinham introduzido na sua natureza efeminada curiosidades, corrupções. Às escondidas fumava cigarros: emagrecia e andava mais amarelo.
Entrou no seminário. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco úmidos, as lâmpadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silêncio regulamentado, o toque das sinetas — deram-lhe uma tristeza lúgubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratá-lo por tu , a admiti-lo, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, às conversas em que se contavam anedotas dos mestres, se caluniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quase todos falavam com saudade das existências livres que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, enquanto um vapor se exala dos prados; os que vinham das pequenas vilas lamentavam as ruas tortuosas e tranqüilas de onde se namoravam as vizinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pátio do recreio lajeado, com as suas árvores definhadas, os altos muros sonolentos, o monótono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Inácio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam à noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes — o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao áspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforje escuro.
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