Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço. Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde do candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:
— Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possível casar-te para o fim do mês.
Ela não respondeu - mas a sua imaginação alvoroçou-se àquelas palavras. Casada daí a um mês, ela! Apesar de João Eduardo lhe ser indiferente, a idéia daquele rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma perturbação a todo o seu ser.
E quando a mãe ia descer ao quarto, disse-lhe:
— Que lhe parece, minha mãe? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
— Também acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.
Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
"SR. JOÃO EDUARDO.
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou
a que muito lhe quer,
Amélia Caminha".
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
Às Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa, e deixou Amélia só "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito, João Eduardo bateu à campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em água-de-colônia. Quando chegou à porta da sala de jantar não havia luz, e a bonita forma de Amélia destacava de pé, junto à claridade da vidraça. Ele pôs o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que ficara imóvel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:
— Lá recebi a cartinha, menina Amélia.
— Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as faces a arder.
— Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...
— Haviam de ser... - disse ela.
Calaram-se, muito perturbados. Ele então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:
— Então sempre quer?
— Quero, murmurou Amélia.
— E o mais depressa possível, hem?
— Pois sim...
Ele suspirou, muito feliz.
— Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as suas mãos, com pressões temas, iam-se apoderando dos braços dela, dos pulsos aos cotovelos.
— A mamã diz que podemos viver juntos, disse ela, esforçando-se por falar tranquilamente.
— Está claro, e eu vou mandar fazer lençóis, acudiu ele, todo alterado.
Atraiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os lábios; ela teve um soluçozinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda lânguida.
— Oh filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da mãe rangeram na escada, e Amélia foi vivamente para o aparador acender o candeeiro.
A S. Joaneira parou à porta; e para dar a sua primeira aprovação maternal, disse, com bonomia:
— Então vocês estão aqui às escuras, filhos?
Foi o cônego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amélia, uma manhã na Sé. Falou no a propósito do enlace , e acrescentou:
— Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...
— Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
O cônego pigarreou grosso, e ajuntou:
— E você agora apareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence à história... O que lá vai, lá vai!
— Está claro, está claro... - rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, saiu da igreja.
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