1 ...8 9 10 12 13 14 ...46 — Eu preferia-o no Baile de Máscaras , disse a condessa.
— Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
No entanto o rapaz louro viera apertar a mão à senhora condessa, falando-lhe baixo, muito risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe caíra uma luva, e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu Teresa, depois de se ter aproximado vagarosamente da janela e olhando para a rua — foi sentar-se numa causeuse com um abandono que punha em relevo a magnífica escultura do seu corpo, e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:
— Vamo-nos, João?
A condessa disse-lhe então:
— Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos dum negro úmido como o cetim preto coberto de água.
— Está na província agora? Perguntou ela, bocejando um pouco.
— Sim, minha senhora, vim há dias.
— Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guarda-sol:
— Na serra, minha senhora.
— Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Há sempre neve, diz que a igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a ver se o mudávamos. Pede-lhe tu também...
— O quê? disse Teresa.
A condessa contou que Amaro requerera para uma paróquia melhor. Falou de sua mãe, da amizade que ela tinha a Amaro...
— Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava... Não se lembra?
— Não sei, minha senhora.
— Frei Maleitas !... Tem graça! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre metido na capela...
Mas Teresa, dirigindo-se à condessa:
— Sabes com quem se parece este senhor?
A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
— Não se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa. Não me lembra agora o nome...
— Bem sei, o Jalette, disse a condessa. — Bastante. No cabelo, não.
— Está visto, o outro não tinha coroa!
Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.
— Sabe música? perguntou, voltando-se para Amaro.
— A gente aprende no seminário, minha senhora.
Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a frase do Rigoletto , parecida com o Minuete de Mozart , que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro ato, da senhora de Crécy, — e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquilos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com árias de óperas, melancolias de bom gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse , sentindo a música chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer — pensando que vai voltar à dureza das côdeas secas e à poeira dos caminhos.
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:
The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
— Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à porta, batendo docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
— Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo-se logo.
O ministro veio, com uma pressa galante:
— Que é, minha senhora? que é?
O conde e o sujeito de magníficas suíças tinham entrado discutindo ainda.
— A Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.
— Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.
— Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometo, prometo solenemente...
— Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor paróquia vaga?
— Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os ombros, corado.
O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar circunspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:
— Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do distrito e sede do bispado.
— Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?
— Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.
— Leiria é excelente!
— Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O Sr. padre Amaro é um eclesiástico novo...
— Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor não é novo?
O ministro sorriu, curvando-se.
— Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.
— Parece-me inútil, o pobre Correia está vencido! A prima Teresa chamou-lhe novo!
— Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou também tão antigo...
— Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820.
— Era meu pai, caluniador, era meu pai!
Todos riram.
— Sr. Correia, disse Teresa, está entendido. O Sr. padre Amaro vai para Leiria!
— Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tirania!
— Thank you , fez Teresa, estendendo-lhe a mão.
— Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fitando-a.
— Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída, dando pequeninas pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a doce ária inglesa:
The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
— É negócio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma semana está nomeado. Pode ir descansado.
Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:
— Senhor ministro, eu agradeço...
— À senhora condessa, à senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
— Minha senhora, eu agradeço, veio ele dizer à condessa, todo curvado.
— Ai, agradeça a Teresa. Ela quer ganhar indulgências, parece.
— Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano — as tristezas da aldeia quando Lubin está ausente!
Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornara a esquecer aquela manhã em casa da Sra. condessa de Ribamar, — o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes ... Cantava-lhe sempre no cérebro aquela ária triste do Rigoleto : e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz louro: detestava-o então, e a língua bárbara que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as fontes à idéia de que um dia poderia confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de seda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionário.
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