1 ...6 7 8 10 11 12 ...17 Anne Pauline tocou ao meio-dia à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol. Perante o silêncio, tocou uma segunda vez. O sol e o calor pareciam ter amolecido as pessoas que agora caminhavam de forma dolente pela avenida, quase como se pressentissem a revolução que estava prestes a ocorrer. Naquele momento, as cores vermelha e dourada que ainda resistiam da estátua da Fénix acentuaram-se como se o pássaro quisesse tomar vida e voar. Seguidamente, como acontecia duas vezes por dia, o mecanismo elétrico que existia dentro da estátua fez acionar o movimento das placas onde se encontravam as cinzas, de onde agora corria uma água límpida e fresca. Subitamente, a estátua tinha-se transformado numa fonte de água.
Entretanto, enquanto Anne Pauline esperava que Sofia Estelar lhe abrisse a porta, algo de muito importante para a sua vida estava a acontecer, naquele preciso momento, numa outra zona da cidade.
Georgine Gunderson era bibliotecária há muitos anos e, naquele dia de verão, tinha sido chamada pelo diretor de arquivos da biblioteca municipal. Não medindo mais de um metro e sessenta, de olhos verdes escuros e rosto oval, recebeu a informação que tinha sido destacada temporariamente para a antiga biblioteca nacional, já extinta. Seria assim a única funcionária permanente daquelas instalações, abandonadas há mais de sete anos. O antigo edifício da biblioteca, do século XIX, albergava agora encomendas e livros que, por motivos logísticos, não podiam ser guardados noutros locais da Câmara por falta de espaço. Era um espaço antigo que tinha funcionado como repositório dos mais importantes catálogos da cidade e que se encontrava fechado há vários anos.
Georgine Gunderson não compreendia a razão pela qual tinha sido colocada naquelas funções, extremamente solitárias e aparentemente inadequadas à sua experiência profissional. Por momentos, pensou que o seu segredo mais íntimo tinha sido revelado. Sim, ela tinha um segredo. Existia ainda outra hipótese; talvez as suas investigações fora do horário de expediente para descobrir a verdadeira história da Avenida do Sol, tivessem incomodado as suas chefias, sendo esta a forma encontrada, de se voltar a concentrar no seu trabalho. A verdade é que, neste dia, ela era oficialmente a única funcionária destacada pela Câmara para arquivar livros na extinta biblioteca.
– É apenas um espaço temporário. Precisamos de alguém que, por agora, nos possa ajudar a dar alguma arrumação ao que ainda lá se encontra naquela biblioteca. Hoje chegou uma encomenda importante. Preciso que a Georgine vá até lá e ajude a arrumar os livros que vieram hoje. Vai lá ficar durante os próximos nove meses. Depois disso, volto a colocá-la como funcionária permanente na nova biblioteca, prometeu-lhe o chefe.
Ela nada podia fazer. Relutantemente, Georgine Gunderson foi naquela manhã para a rua onde ficava localizado o edifício da biblioteca antiga. À sua espera, num pequeno camião, estavam várias caixas de livros que foram trazidas para dentro das instalações. Com cuidado, todas as caixas foram colocadas em cima de uma antiga mesa, hoje coberta de pó. Algo naquele espaço a assustava. Georgine não gostava de ser a única pessoa a trabalhar naquele lugar inóspito, atualmente fechado ao público.
Cuidadosamente, a bibliotecária abriu todas as caixas que lhe tinham chegado naquele dia. Todas elas tinham sido numeradas pela Câmara. Não sabia de onde vinham aqueles livros e essas explicações nunca lhe foram dadas. Foi assim, com bastante alívio, que após duas horas de trabalho, abriu a última caixa daquele carregamento: a BO18. Lentamente, com muito cuidado, começou a colocar os livros nas prateleiras. Georgine Gunderson não sabia, mas naquele dia, fora destacada para guardar um segredo. Segredo esse que ela teria de manter em segurança durante os próximos nove meses, de acordo com as orientações dadas pelo seu chefe. Entretanto esperava-lhe muito trabalho.
Os nove meses significariam muito, tanto para Anne Pauline, como para Georgine. Sem que as duas pudessem ainda adivinhar, os seus destinos acabariam por se cruzar. Isto porque, embora Georgine Gunderson não estivesse habituada a guardar segredos porque ninguém os confiava (não por falta de confiança, mas porque ela era uma pessoa invisível aos olhos dos outros), a verdade é que ela guardava agora uma verdade inconveniente acerca da nova paciente de Marcus Belling. Sem o saber ainda, fechou a caixa BO18 e, com um sentimento estranho, regressou a casa.
O Mistério de Anne Pauline
1
A PORTA ABRIRA-SE. Finalmente era dada autorização a Anne Pauline para conhecer Marcus Belling.
Para quem conseguia entrar no consultório de hipnose, isso significava que já se tinha passado pelo rigoroso crivo de seleção de Sofia Estelar. A secretária do famoso hipnotizador tinha um ritual, que mantinha há muitos anos. Sempre que alguém iniciava as sessões de hipnose com Belling, ela ficava à espera da pessoa na porta para a cumprimentar pessoalmente, para provar a si mesma que sabia escolher as pessoas certas. As “pessoas certas” eram aquelas que precisavam realmente da ajuda de Belling para ultrapassar os seus traumas ou quebrar hábitos prejudiciais e não apenas as que tinham interesse em aproveitar-se do seu mediatismo. Sofia Estelar sentia alguma vaidade e orgulho, nestas suas funções.
Quando Sofia Estelar viu Anne Pauline, apercebeu-se que era muito mais bonita do que a fotografia que vinha colada no impresso. Impresso esse que era enviado, em forma padrão, para todas as pessoas que solicitavam uma sessão com Belling. Como ela bem sabia, existiam mulheres muito pouco fotogénicas que, no entanto, deslumbravam quando apareciam na Avenida do Sol e estes eram casos a que ela tinha de se manter atenta. Este esquema de ilusão da mente era enganador e não permitia a Sofia Estelar confiar na fotografia que vinha com o papel de registo na consulta. No caso de Anne Pauline, à medida que ela chegava cada vez mais perto, a secretária sentiu um tremor estranho dentro de si. “Não gosto desta sensação”, pensou ela para si mesma. Naquele momento, ela percebeu imediatamente que tinha escolhido a pessoa errada para ter sessões de hipnose com Belling e que, excecionalmente, o seu método de seleção que era uma mistura de intuição, astúcia, inteligência e perspicácia, não tinha funcionado. Alguma coisa tinha falhado naquele processo. Sofia Estelar ficou subitamente amedrontada com aquela constatação. “Estar-me-á a faltar o talento para isto?”, pensou imediatamente.
Era raro a secretária pessoal de Marcus Belling duvidar do seu talento para as funções que desempenhava no consultório há mais de vinte anos. A sua intuição dizia-lhe agora que Anne Pauline Roux era uma pessoa diferente, daquela que inicialmente tinha julgado. Mas já não havia nada a fazer. Anne Pauline percebeu o desconforto que a sua presença causou em Sofia Estelar, mas as duas cumprimentaram-se cordialmente. A secretária de Marcus Belling acompanhou-a então, corredor dentro, até uma das portas onde a esperava o famoso hipnotizador. Sem ainda ter perfeita consciência disso, Sofia Estelar tinha acabado de iniciar, para sempre, a mudança na vida de todos aqueles que trabalhavam na Avenida do Sol. Anne Pauline era uma presença misteriosa. Conseguia sentir isso mesmo de cada vez que falava ou olhava para ela. Naquele instante, arrependeu-se de lhe ter aberto a porta. “Devia ter ficado lá fora”, voltou a pensar.
Quando Anne Pauline entrou no consultório de Marcus Belling, ela deu-se conta que o charme dele era maior do que aquilo que julgava. “Na televisão parece mais alto”, pensou ela para si mesma. Ele recebeu-a com um sorriso agradável e com um gesto afetuoso. Sofia Estelar virou os olhos. Nunca se habituaria ao encantamento das mulheres por Belling, mas fechou a porta atrás de si e deixou-os sozinhos para a sessão de hipnose que estaria prestes a começar.
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