São recorrentes os relatórios que evidenciam, na exploração de ouro, diamantes e outras pedras preciosas: a tortura, a repressão, o abuso sexual, a exploração de trabalhadores, a pobreza, a escravidão, o trabalho infantil, a degradação das condições de segurança com implicações graves para a integridade física e a vida das pessoas ou a discriminação em função da raça, etnia, género, origem geográfica ou religião. O contrabando e o financiamento de governos corruptos e ditatoriais e de grupos rebeldes opressivos assombram o comércio internacional de metais e pedras preciosas. O desenvolvimento da exploração de minas em locais com relevância ambiental e cultural ameaça o direito à paisagem e ao ambiente, bem como todos os outros direitos dos povos indígenas, associados à profunda relação destes povos com as suas terras.[37] Mesmo se uma pessoa consente, no uso da sua autonomia da vontade, em se submeter a condições laborais degradantes, como única forma de sobrevivência, a sua dignidade, ou por outras palavras a sua essência como pessoa humana está a ser violada. Aquele que submete o seu semelhante a tais condições fere os valores essenciais da humanidade.
A dignidade de cada ser humano é a expressão livre do seu desenvolvimento pessoal e não da sua mera sobrevivência. Neste sentido, o respeito do princípio da dignidade da pessoa humana depende da existência de uma subsistência condigna que, face à evolução das necessidades de desenvolvimento pessoal do homem situado no seu tempo, não se satisfaz com o simples assegurar de um direito a um mínimo de subsistência.
De acordo com uma investigação da organização não-governamental (ONG) Clean Clothes Campaign, os operários de empresas fornecedoras da Calvin Klein e Hugo Boss, situadas na República Checa e na Polónia, recebem salários iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional.[38] Tendo em conta o custo de vida nestes países, os trabalhadores entendem que precisam de um salário três vezes superior ao salário mínimo de forma a viverem com dignidade. Em alguns casos, necessitam de trabalhar horas extraordinárias para atingir o salário mínimo. Noutros casos, as horas extraordinárias não são pagas.[39]
Como bem afirma Jorge Bacelar Gouveia, cada ser humano é uma “pessoa concreta e não indivíduo abstrato do Liberalismo oitocentista – a pessoa situada na História e não fora dela, vivendo no seu tempo e sentindo um conjunto de necessidades”[40] próprias do seu tempo. Por conseguinte, um salário que corresponda às necessidades do homem actual é condição necessária do desenvolvimento físico e intelectual, da concretização do direito à propriedade privada, bem como de todos os outros direitos humanos de natureza económica, cultural e social que permitem a autonomia e o desenvolvimento pessoal inerente à dignidade da pessoa humana.
Em virtude deste princípio proíbe-se o retrocesso nas condições de vida e na satisfação das aspirações humanas de desenvolvimento pessoal.
Todavia, devido à ânsia de competir com países onde a mão-de-obra é paga com salários muito baixos, assistimos, um pouco por toda à parte, à deterioração das condições laborais no setor têxtil ou do calçado.
De acordo com uma investigação da Campagna Abiti Puliti, publicada em 2016, as condições laborais dos trabalhadores da indústria de calçado e vestuário de Itália, têm vindo a deteriorar-se devido à pressão da concorrência do mesmo setor situado na Ásia e na Europa de leste. Trabalho ilegal e pagamento de salários que não permitem fazer face às necessidades de sobrevivência e desenvolvimento pessoal dos trabalhadores, estão entre os factos que minam a as naturais aspirações do Homem e da própria Humanidade.[41]
Ainda segundo a mencionada investigação, Louis Vuitton, Armani, Prada e Dior estão a comprar, em Itália, fábricas antigas que fecharam devido à concorrência da produção mais barata oriunda dos países do leste da Europa e da Turquia.[42] Teme-se que nestas fábricas recuperadas se adopte uma política de retrocesso ao nível das condições laborais de forma a fazer face à concorrência da produção mais barata.[43] No passado, embora recente, inspetores italianos do trabalho detetaram, por diversas vezes, trabalhadores ilegais e outras situações não conformes com o respeito da dignidade da pessoa humana, em empresas fornecedoras de marcas como a Prada, Louis Vuitton, Chanel ou Dior.[44]
Se a pessoa humana é essência e não mera existência,[45] então ela não é moldável em função da concorrência e do lucro. Muito menos deve ser um instrumento do poder económico.
Relembrando Immanuel Kant, na sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “O homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.[46] Uma vez que “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.[47]
E se tem dignidade tem ainda liberdade de agir contra todas as formas de censura. Em 2015, a empresa turca SF Leather, que produz carteiras para a marca inglesa Mulberry, despediu catorze trabalhadores por serem membros da Associação de Trabalhadores Deriteks Sendika (membro da IndustriALL Global Union) e reivindicarem melhores salários.[48] Como bem entende Paulo Ferreira da Cunha: “a defesa da dignidade, a luta pela dignidade, é de todos e de cada um. A dignidade, sendo, como a personalidade jurídica, um pressuposto, constitui também, todavia como a capacidade para agir, uma variável do discernimento e do seu efetivo uso na prática”.[49]
Acompanhamos ainda o pensamento do professor Paulo Ferreira da Cunha no que diz respeito à dignidade da pessoa humana como “valor autónomo e auto-subsistente de um ser” que “se traduz na prática, pelo dever moral desse ser para consigo próprio, e pelos deveres jurídicos de respeito, solidariedade e socorro por parte dos outros” e “pressupõem precisamente uma individualidade, mas uma individualidade interativa, social, e radicada”.[50]
Este imperativo do Homem-solidário aplicado à indústria da moda e afins, não é o Homem que pratica a caridadezinha, mas sim aquele que cria ou facilita a existência de um sistema económico em que todos beneficiam, em igual medida, de acordo com os seus méritos, sem comprometer a dignidade da pessoa humana.
Por exemplo, no Uzbequistão, um dos maiores produtores de algodão do mundo, o Estado obriga quase todos os cidadãos, incluindo crianças, enfermeiros ou médicos, a trabalhar nos campos de algodão.[51] Médicos que deveriam estar nos hospitais, crianças que deveriam estar nas escolas trabalham para o negócio lucrativo de um grupo reduzido de oligarcas com ligações ao Estado uzbeque.
O aparente bem comum (riqueza da nação) que o Estado visa atingir, não é mais do que um jogo de egoísmos que beneficia só alguns, conseguido à custa da negação dos direitos humanos e não compatível com a ideia do homem-solidário inerente a uma concepção jusnaturalista da dignidade da pessoa humana.
Se as marcas de moda de luxo aplicam um preço elevado a bens ou matérias-primas que são produzidos e fornecidos em massa, este preço deve ter em conta a produção de bens de acordo com o respeito dos direitos humanos.
Neste contexto, as marcas de moda de luxo têm um dever de implementar uma verdadeira política de responsabilidade social em todas as suas relações comerciais. Impõem-se, assim, uma maior proximidade com as empresas fornecedoras das marcas de luxo e seus trabalhadores.
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