Entre a capitulação de S. João de Acre, a 28 de maio de 1291, e a criação da Ordem de Cristo, a 14 de março de 1319, no rigor do tempo, passaram 27 anos, 9 meses e 17 dias. Se numa leitura objetiva ficamos com a ideia de que bastante tempo passou, numa interpretação mais histórica temos a convicção de que a ligação entre os dois acontecimentos é intensa e se estabelece de forma direta. Acre, apesar de estar tão longe (a cerca de 6.000 km de viagem terrestre), fazia-se sentir muito perto se pensarmos no impacto que tiveram em Portugal os acontecimentos que lá se desenrolaram.
Há também paralelismos cronológicos entre o que aconteceu em França e em Portugal que são muito sugestivos no contexto desta reflexão. O primeiro sinal a que a historiografia tem atribuído significado foi da iniciativa de Filipe IV de França e consistiu na decisão de mandar prender os Templários em 13 de outubro de 1307. 15 Do ponto de vista da memória documental, em Portugal, o ano de 1307 coincide, precisamente, com a altura em que as provas arquivísticas relacionadas com esta Ordem sugerem a abertura de um ciclo de grandes alterações relacionadas sobretudo com o património destes freires. 16 A situação era complexa e pela bula « Deus ultionum Dominus », de 12 de agosto de 1308, o arcebispo de Braga e o bispo do Porto foram nomeados administradores dos bens do Templo em Portugal. 17
No alinhamento dos acontecimentos internacionais insere-se a decisão de suprimir a Ordem do Templo em 1312, a qual resultou de um processo longo e teve consequências enormes ao nível da gestão patrimonial. A solução superiormente encontrada foi protagonizada pelo Papa Clemente V que, pelas letras « Ad providam » de 2 de maio de 1312, determinou que os bens do Templo fossem transferidos para o Hospital, abrindo, porém, algumas exceções para dotar novas instituições, incluindo, entre elas, Portugal. 18 O assunto seria bastante polémico e, em 23 de agosto de 1312, pela bula « Dum fili carissime », justifica-se a referida exceção. 19 Na bula fundacional da Ordem de Cristo aponta-se a razão, nos seguintes termos: «per que os dictos bens que forom do Temple que eram nos seus rreynos non se podiam juntar nem encorporar aa dicta orden do Hospital sen gram perigoo e gran prejoizo seu e dos seus rreynos». 20 De facto, a dimensão e a proximidade no terreno dos domínios Templários e Hospitalários situados em Portugal constituiriam sérias ameaças à prossecução da política régia de controlo destas instituições.
Outra consequência produzida pela bula « Vox in excelso » fez-se sentir na criação de um repositório documental de valor jurídico-probatório relacionado com a Ordem do Templo, com a finalidade de atestar uma parte do seu espólio patrimonial em Portugal. Desta altura conhecem-se tanto inquirições régias ao património dos Templários, como a cópia de documentos pertencentes aos freires e relacionados com os seus bens imóveis. Deste período, conservam-se nos arquivos portugueses, pelo menos, três inquirições de grande dimensão sobre os bens da Ordem do Templo, datadas de 1312, 21 1314 22 e 1317, 23 a que se podem acrescentar outras com objetivos mais específicos. A título de exemplo, sublinhe-se que o referido inquérito de 1314 se destinava a coligir informações organizadas em torno de 25 artigos sobre as jurisdições exercidas pelos Templários. 24 As respostas obtidas são muito elucidativas dos objetivos que a coroa tinha definido em relação a esta instituição. As testemunhas mais contundentes afirmam que tudo pertencia e dependia do rei, desde os rendimentos auferidos pelo Templo à tutela das questões judiciais e militares, passando pela intervenção régia na organização interna da instituição, através da escolha dos freires e dos mestres e do controlo das reuniões capitulares.
Na sequência dos dados apurados, no ano de 1318, em Portugal, assistiu-se a grande atividade relacionada com a supressão da Ordem do Templo. Depois de no mês de agosto terem sido nomeados os procuradores de D. Dinis à Santa Sé, 25 em 30 de setembro desse mesmo ano, em dois documentos distintos, 26 foi copiada diversa documentação com efeitos probatórios sobre a Ordem do Templo.
Os procuradores enviados por D. Dinis à Santa Sé são João Lourenço de Monsaraz e Pedro Peres com a missão de negociarem junto da cúria romana o destino dos bens da Ordem do Templo em Portugal. Estes homens são, nem mais nem menos, um cavaleiro e um clérigo, respetivamente, representando a dupla condição dos freires. A procuração que receberam, datada de 14 de agosto de 1318, refere-os como «o nobre baron Joham Lourenço cavaleyro e o sagez baron Pero Peres, coonigo de Coymbra». 27 A partir da citação, sublinhe-se a consciência da necessária capacidade de argumentação, já que da sagacidade com que os embaixadores expusessem os argumentos dependeria o sucesso da missão. Pela leitura da bula de fundação da Ordem de Cristo, percebe-se que a retórica se desenvolvia em torno da utilidade da nova instituição no contexto do poder régio e do impacto da condição fronteiriça da instalação dos freires no domínio da expansão da fé e da captação de proveitos materiais.
Perante tudo isto, a Ordem de Cristo foi oficialmente criada em 14 de março de 1319, pela bula « Ad ea ex quibus » outorgada pelo Papa João XXII. 28 No dia seguinte, pela bula « Desiderantes ab intimis », D. Gil Martins foi nomeado Mestre da recém-criada Ordem. 29 Estas bulas foram outorgadas em Avinhão, o que significa que o mensageiro que as trouxe até Portugal teria pela frente quase um mês de viagem. 30
O Mestre escolhido – D. Gil Martins – tinha, até então, desempenhado funções similares na Ordem de Avis, precisamente a Ordem que viria a dar o nome à 2.ª dinastia portuguesa pelo facto de João, filho do rei D. Pedro I, que havia desempenhado o ofício de Mestre, ter sido convertido em Rei de Portugal em 1385. Falamos de D. João, Mestre de Avis, elevado ao trono com o nome de D. João I de Portugal. Segundo a bula fundacional, D. Gil Martins « gardara sempre lealdade ao dicto rrey », o que revela a necessidade de garantir, desde logo, a total cumplicidade com a coroa. 31 No entanto, e com independência de quem é este homem, importa salientar que a sua escolha implica também a escolha da Ordem de Calatrava, com sede no reino vizinho e à qual estava ligado.
Para além dos argumentos régios já enunciados, houve outros fatores que reforçaram a justificação da criação da Ordem de Cristo, como a própria evolução económica e social do Ocidente medieval. Ao evidenciar-se a acumulação de problemas graves no contexto do sistema senhorial, fomentou-se a procura de novos espaços de afirmação, cada vez mais de perfil marítimo, revalorizando-se o potencial do Mediterrâneo para a história de Portugal. 32 A este nível, tanto a já citada bula de criação da Ordem de Cristo como a de nomeação do seu primeiro Mestre expressam a intencionalidade de prossecução da cruzada em territórios situados para além da fronteira territorial.
A compreensão da criação da Ordem de Cristo implica o reconhecimento de duas outras questões capitais. Primeiro, não se pode reduzir à sua bula fundacional, pois a Ordem resulta de um processo que começa em 1307 e se prolonga até 1326. Segundo, não constitui uma ação isolada, sendo conhecidas manifestações da política régia de reforço da autoridade monárquica e de ambição de controlo de todas as outras Ordens Militares instaladas em Portugal.
Quanto à primeira questão, e do ponto de vista documental, há um conjunto de textos que fazem parte deste longo processo. A partir de 1307 foram produzidos documentos relacionados com a transição da base territorial do Templo para a administração régia, bens estes que só mais tarde seriam transferidos para a Ordem de Cristo.
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