Aquele homem parecia morrer voluntariamente. A sua agonia parecia um ato espontâneo. Só as pernas tinham perdido o movimento, como se fosse por elas que a morte o tivesse agarrado. Os pés jaziam-lhe mortos e frios, mas a cabeça respirava-lhe toda a seiva da vida e parecia em perfeita lucidez. Naquele grave momento, G... assemelhava-se ao rei do conto oriental, cuja parte superior do corpo era de carne e a inferior de mármore. O bispo sentou-se numa pedra que viu próxima de si e principiou. O seu exórdio foi um ex-abrupto.
— Felicito-o — disse ele em tom de exprobração. — Creio que nem sempre votou a morte do rei.
O convencional pareceu não reparar no sentido oculto da palavra sempre e respondeu com a maior seriedade:
— Não me felicite, porque o que eu votei foi o fim do tirano.
Era a voz austera em presença da severidade.
— Não percebo o que quer dizer — tornou o bispo.
— Quero dizer que o tirano do homem é a ignorância, e que foi a sua morte o que eu votei. Foi esse tirano o autor da realeza, que é a autoridade tomada de ideias falsas, enquanto a ciência é a autoridade tomada da verdade das coisas. O homem só pela ciência deve ser governado.
— E pela consciência — acrescentou o bispo.
— É a mesma coisa. A consciência não é mais do que a quantidade de ciência inata que possuímos.
O bispo escutava, tomado de admiração, aquela linguagem inteiramente nova para ele.
O convencional prosseguiu:
— Quanto a Luís XVI, votei contra a morte dele. Não me julgo com direito de matar um homem, mas tenho o dever de exterminar o mal. Por isso votei o fim do tirano, isto é, o fim da prostituição para a mulher, o da escravidão para o homem, o das trevas para a criança. Votei isto, votando a república. Votei a fraternidade, a concórdia, a aurora. Trabalhei na queda dos erros e dos preconceitos, de cujo desmoronamento resulta sempre a luz. Fizemos cair a sociedade velha, vaso de misérias, que, ao derramar-se sobre o género humano, se converteu em uma de felicidade!
— Felicidade amarga! — retorquiu o bispo.
— Pode dizer felicidade perturbada; e hoje, depois desse fatal restabelecimento do passado chamado 1814, felicidade desaparecida. Desgraçadamente, reconheço, a obra ficou incompleta; demolimos o antigo regime nos factos, mas não pudemos exterminá-lo inteiramente nas ideias. Não basta destruir os abusos, é necessário modificar os costumes. Destruiu-se o moinho, mas ainda ficou o vento.
— Demolir pode ser que seja útil, mas desconfio sempre de demolições em que entra a cólera.
— O direito tem também a sua cólera, senhor bispo, e a cólera do direito é um elemento do progresso. Assim, digam o que disserem, a revolução francesa foi o maior passo que a humanidade tem dado depois do aparecimento de Cristo. Incompleta, concordo, mas sublime. Resolveu todas as incógnitas sociais, suavizou os espíritos, acalmou, pacificou, esclareceu; inundou a terra das ondas da civilização Foi portanto boa! A revolução francesa foi a santificação da humanidade.
O bispo não pôde conter-se e retorquiu:
— Sim? E 93?
O convencional endireitou-se na cadeira com solenidade quase lúgubre e exclamou com toda a energia possível a um moribundo:
— Aí vem com 93! Já estava à espera disso! Há mil e quinhentos anos principiou a formar-se uma nuvem que, ao cabo de quinze séculos, rebentou. E o senhor vem acusar o raio!
Apesar de tentar encobri-lo a si próprio, o bispo sentiu-se ferido, porém, respondeu, aparentando indiferença:
— O juiz fala em nome da justiça e o sacerdote em nome da religião, que é uma justiça mais elevada. O raio não deve enganar-se. — E olhando fixamente para o convencional, acrescentou: — E Luís XVII?
— Luís XVII? Ora vejamos. Quem é que o senhor lastima? É a criança inocente? Nesse caso, estamos de acordo, porque choro com o senhor. É a criança real? Peço que me deixe refletir. Para mim, o irmão de Cartouche, menino inocente, atado à força por baixo dos braços e suspenso até o fazerem morrer, só pelo crime de ser irmão de Cartouche, não é facto menos doloroso do que o martírio porque passou o neto de Luís XV na torre do Templo, só pelo facto de ser neto de Luís XV.
— Eu é que não posso aceitar a aproximação de semelhantes nomes — disse o bispo.
— Mas por qual dos dois reclama? Por Cartouche ou por Luís XVII?
Seguiu-se um momento de silêncio. O bispo quase se arrependia de ter ido ali, porque se sentia estranhamente impressionado.
O convencional prosseguiu:
— Vejo que não gosta do rigor da verdade, senhor padre! Gostava Cristo, que pegava numa vara e varria o templo. O seu azorrague cheio de relâmpagos dizia bem rudes verdades. Quando exclamava: Sinite parvulos, não fazia distinção entre as crianças. Não teria escrúpulo de juntar o filho de Barrabás com o filho de Herodes. O tratamento de Alteza não serve de nada à inocência, porque tão augusta é coberta de andrajos como quando adornada de arminhos!
— É exato — disse o bispo em voz baixa.
— Insisto, pois, na minha opinião — continuou o convencional. — Falou-se em Luís XVII, entendamo-nos, portanto. Devemos chorar sobre todos os inocentes, sobre todos os mártires, sobre todas as crianças, sejam filhos do povo, sejam filhos do rei? De acordo. Mas então, repito, é necessário retroceder muito além de 93, porque é antes de Luís XVII que as lágrimas devem começar a ser derramadas. Estou pronto a chorar com o senhor os filhos dos reis, contando que o senhor chore comigo, os filhos do povo!
— Eu choro por todos — disse o bispo.
— Igualmente! — exclamou G... — Mas se a balança deve inclinar para alguma parte, que seja antes para o lado dos filhos do povo, porque há mais tempo que sofrem!
Seguiu-se nova pausa, a qual foi interrompida pelo convencional. Firmou-se num dos cotovelos, apertou entre o polegar e o índice dobrado a pele da cara, com o gesto maquinal de quem interroga ou reflete, e fitou no bispo um olhar perscrutador, que respirava toda a energia da agonia. Foi quase uma explosão.
— Sim, senhor bispo, há muito que o povo sofre! Mas faça o favor de dizer-me: o que pretendia ao vir interrogar-me e falar-me sobre Luís XVII, o senhor a quem eu nem sequer conheço? Desde que resido nesta terra, tenho vivido sempre aqui encerrado, sem companhia, sem ver ninguém, além desse rapazinho que me tem servido. O seu nome é verdade que o ouvi por duas ou três vezes e, devo dizê-lo, pronunciado com respeito, mas isso nada quer dizer; os homens astuciosos sabem perfeitamente como se lança poeira nos olhos do povo. É verdade, eu não ouvi o ruído da sua carruagem; deixou-a decerto oculta no arvoredo, à entrada do caminho que conduz aqui? Repito-lhe, não o conheço, disse-me que era o bispo, mas isso nada me adianta no conhecimento das suas qualidades morais. Em suma, o senhor é um bispo, quer dizer, um príncipe da Igreja, um desses homens que se cobrem de ouro e arminhos, vivem no fausto e nos regalos, cobram boas rendas, disfrutam bispados: por exemplo, o de Digne que tem de renda fixa quinze mil francos e dez mil de emolumentos, soma vinte e cinco mil francos: é um desses homens que têm lacaios, mesa lauta, onde à sexta-feira se serve o melhor peixe; que rodeados de criados se pavoneiam em coches de gala e habitam palácios, tudo em nome de Jesus Cristo, que andava descalço! O senhor é um prelado, quer dizer, um homem com rendimentos, palácios, cavalos, lacaios, boa mesa, todas as sensualidades da vida, enfim, que possui como os outros e das quais como qualquer outro goza. Está muito bem, mas isso diz mais ou menos que o suficiente; não me esclarece sobre o seu valor intrínseco, essencial para quem, como o senhor, talvez, vem aqui com o intuito de me dar sabedoria e luz? Com quem estou a falar? Quem é o senhor?
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