“Se soubessem alguma coisa, não interrogariam assim”, disse para consigo D’Artagnan. “Mas que será que procuram saber agora? Se o duque de Buckingham se encontra em Paris e se teve ou terá algum encontro com a rainha?”
D’Artagnan fixou-se nesta idéia, que depois de tudo o que ouvira não era improvável. Entretanto, a ratoeira funcionava permanentemente e a vigilância de D’Artagnan também.
No dia seguinte ao da prisão do pobre Bonacieux, à noite, quando Athos acabava de deixar D’Artagnan para ir ao palácio do Sr. de Tréville, acabavam de dar nove horas e Planchet, que ainda não fizera a cama, começava a sua tarefa, bateram à porta da rua, a porta abriu-se e fechou-se imediatamente: alguém acabara de cair na ratoeira.
D’Artagnan correu para o lugar desladrilhado, deitou-se de bruços e escutou. Não tardou a ouvir gritos e depois gemidos que tentavam abafar. De interrogatório, nada.
“Diabo’, disse D’Artagnan consigo mesmo, “parece-me que é uma mulher, revistam-na, resiste... violentam-na... os miseráveis!”
E D’Artagnan, apesar da sua prudência, continha-se a custo para não interferir na cena que se passava debaixo de si.
— Mas eu repito que sou a dona da casa, meus senhores, repito sou a Sra Bonacieux, repito que estou ao serviço da rainha! — gritava a pobre mulher.
— A Sra Bonacieux! — murmurou D’Artagnan. — Terei tanta sorte que descobri o que todos procuram?
— Era precisamente você quem esperávamos — insistiram os interrogadores.
A voz tornou-se cada vez mais abafada, um movimento tumultuoso fez vibrar os madeiramentos. A vítima resistia tanto quanto uma mulher pode resistir a quatro homens.
— Perdão, senhores, per... — murmurou a voz, que depois só conseguiu emitir sons inarticulados.
— Amordaçam-na, vão levá-la! — exclamou D’Artagnan, levantando-se como que impelido por uma mola. — A minha espada? Bom, tenho-a ao lado. Planchet!
— Senhor?
— Corra para buscar Athos, Porthos e Aramis. Um dos três estará com certeza em casa, talvez todos os três tenham já se recolhido. Que peguem as armas e venham, que corram. Ah, agora me lembro: Athos está com o Sr. de Tréville!
— Mas onde vai, senhor, onde vai?
— Desço pela janela para chegar mais cedo. Coloque os ladrilhos no seu lugar, varra o chão, saia pela porta e corra onde disse.
— Oh, senhor, senhor, vai se matar! — gritou Planchet.
— Cale-se, imbecil — respondeu D’Artagnan.
E agarrando-se com as mãos ao rebordo da janela, deixou-se cair do primeiro andar, que felizmente não era alto, sem fazer um arranhão. Depois foi imediatamente bater à porta, murmurando:
— Vou me deixar cair na ratoeira e ai dos gatos que se atirarem a semelhante rato!...
Assim que a aldraba ressoou pela mão do jovem, o tumulto cessou, aproximaram-se passos, a porta abriu-se e D’Artagnan, de espada desembainhada, lançou-se no apartamento de mestre Bonacieux, cuja porta, sem dúvida acionada por uma mola, se fechou por si mesma atrás dele.
Então aqueles que ainda se encontravam na malfadada casa de Bonacieux e os vizinhos mais próximos ouviram grandes gritos, correrias, tinido de espadas e ruído prolongado de móveis. Pouco depois, aqueles que surpreendidos pelo barulho tinham vindo às janelas para averiguarem a sua causa, viram a porta tornar a abrir-se e quatro homens vestidos de preto, não saírem, mas sim levantarem vôo como corvos espantados, deixando no chão e nas esquinas das mesas penas da asas, isto é, farrapos dos suas roupas e restos das suas capas.
D’Artagnan saíra vencedor sem muita dificuldade, deve-se dizer, pois só um guarda estava armado e esse mesmo apenas se defendeu por honra da firma. É certo que os outros três tinham tentado agredir o jovem com as cadeiras, os bancos e as louças, mas dois ou três arranhões feitos pelo espadalhão do gascão tinham bastado para assustá-los. Dez minutos chegaram para a sua derrota e D’Artagnan ficara senhor do campo de batalha.
Os vizinhos, que tinham aberto as janelas com o sangue-frio característico dos habitantes de Paris naqueles tempos de motins e rixas permanentes, fecharam-nas assim que viram fugir os quatro homens de preto, o seu instinto dizia-lhes que de momento tudo terminara.
Aliás, era tarde, e então como hoje as pessoas deitavam-se cedo no Bairro do Luxemburgo. D’Artagnan ficou sozinho com a Sra Bonacieux e virou-se para ela, a pobre mulher estava caída num cadeirão e meio desmaiada. D’Artagnan examinou-a com uma rápida vista de olhos.
Era uma encantadora mulher de vinte e cinco ou vinte e seis anos, morena, de olhos azuis, nariz levemente arrebitado, dentes admiráveis e tez marmoreada de cor-de-rosa e opala. Terminavam aí, porém, os sinais que podiam levar a confundi-la com uma grande dama. As mãos eram brancas, mas sem delicadeza, os pés não revelavam a mulher de raça. Felizmente, D’Artagnan não se preocupava ainda com tais pormenores.
Enquanto D’Artagnan examinava a Sra Bonacieux, e se detinha nos pés, como dissemos, viu no chão um fino lenço de cambraia, que apanhou como de costume e em um canto do qual reconheceu o mesmo monograma que vira no lenço que quase o levara a cortar a garganta de Aramis... ou vice-versa.
Desde então, D’Artagnan desconfiava dos lenços brasonados; meteu portanto, sem dizer nada, o que apanhara na algibeira da Sra Bonacieux. Nesse momento, a Sra Bonacieux recuperou os sentidos. Abriu os olhos, olhou com terror à sua volta, viu que a casa estava vazia e se encontrava sozinha com o seu libertador. Estendeu-lhe imediatamente as mãos, sorrindo. A Sra Bonacieux possuía o mais encantador sorriso do mundo.
— Ah, senhor, foi meu salvador! Permita-me lhe agradecer.
— Minha senhora, limitei-me a fazer o que qualquer gentil-homem faria no meu lugar — respondeu D’Artagnan. — Não me deve portanto nenhum agradecimento.
— Isso é que devo, senhor, isso é que devo! E espero provar-lhe que não foi útil a uma ingrata. Mas o que queriam aqueles homens, que primeiro pensei serem ladrões, e por que motivo o Sr. Bonacieux não está em casa?
— Minha senhora, aqueles homens eram muito mais perigosos do que ladrões, pois eram agentes do Sr. Cardeal, e quanto ao seu marido, o Sr. Bonacieux, não está em casa porque ontem vieram buscá-lo para levarem-no para a Bastilha.
— Meu marido na Bastilha! — exclamou a Sra Bonacieux. — Oh, meu Deus, que fez ele? Pobre homem, ele é a inocência personificada!
E qualquer coisa como um sorriso surgiu no rosto ainda assustado da jovem mulher.
— Que fez ele, senhora? Creio que o seu único crime é ter ao mesmo tempo a felicidade e a infelicidade de ser seu marido.
— Mas, senhor, sabe então que...
— Sei que foi raptada, senhora.
— E por quem, soube? Oh, se o sabe, diga-me!
— Por um homem de quarenta a quarenta e cinco anos, de cabelo preto, moreno e com uma cicatriz na têmpora esquerda.
— É isso, é isso! Mas o seu nome?
— O seu nome? É o que ignoro.
— E o meu marido sabia que eu fora raptada?
— Foi prevenido por uma carta que lhe escreveu o próprio raptor.
— E desconfiou por que me raptaram? — perguntou a Sra Bonacieux, embaraçada.
— Creio que atribuiu o rapto a motivo político.
— A princípio duvidei que fosse esse o motivo, mas agora penso como ele. Portanto o querido Sr. Bonacieux não desconfiou um só instante...?
— Ah, longe disso, minha senhora! Estava até muito orgulhoso da sua sensatez e sobretudo do seu amor.
Segundo sorriso quase imperceptível aflorou aos lábios rosados da bela mulher.
— Mas como fugiu? — perguntou D’Artagnan.
— Aproveitei um momento em que me deixaram sozinha e como sabia desde manhã a que atribuir o meu rapto, desci pela janela com o auxílio dos meus lençóis. Depois, como julgava que meu marido estivesse em casa, corri para cá.
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