— E quem fez esse belo relato, Sire? — perguntou tranquilamente o Sr. de Tréville.
— Quem fez este belo relato, senhor? E quem o senhor queria que fosse a não ser aquele que vela enquanto durmo, que trabalha enquanto me divirto, que dirige tudo dentro e fora do reino, tanto na França como na Europa?
— Vossa Majestade quer falar de Deus, sem dúvida — observou o Sr. de Tréville —, pois não conheço ninguém mais poderoso do que Vossa Majestade a não ser Deus.
— Não, senhor; refiro-me ao sustentáculo do Estado, ao meu único servidor, ao meu único amigo, ao Sr. Cardeal.
— Sua Eminência não é Sua Santidade, Sire.
— Que quer dizer com isso, senhor?
— Que só o papa é infalível e que essa infalibilidade não se estende aos cardeais.
— Quer dizer que me engana, quer dizer que me atraiçoa. Acuse-o então. Vamos, diga, confesse francamente que o acusa.
— Não Sire, mas digo que se engana a si mesmo, digo que foi mal informado, digo que teve pressa de acusar os mosqueteiros de Vossa Majestade, para com os quais é injusto e que não foi beber as suas informações em boas fontes.
— A acusação vem do Sr. de La Trémouille, do próprio duque. Que responde a isto?
— Poderia responder, Sire, que se trata de pessoa muito interessada na questão para ser uma testemunha imparcial; mas longe disso, Sire, conheço o duque como um leal gentil-homem e confiarei nele, mas com uma condição, Sire.
— Qual?
— Que Vossa Majestade mande chamá-lo e o interrogue pessoalmente, em particular, sem testemunhas, e que Vossa Majestade voltará a me receber assim que despedir o duque.
— Seja! — concordou o rei. — E acreditará no que disser o Sr. de La Trémouille?
— Acreditarei, Sire.
— Aceitará a sua sentença?
— Sem dúvida.
— E se submeterá às reparações que exigir?
— Absolutamente.
— La Chesnaye! — chamou o rei. — La Chesnaye!
O criado de quarto de confiança de Luís XIII, que se encontrava sempre à porta, entrou.
— La Chesnaye — disse o rei —, vão imediatamente buscar o Sr. de La Trémouille, quero falar com ele esta noite.
— Vossa Majestade dá a sua palavra de que não verá ninguém entre o Sr. de La Trémouille e eu?
— Ninguém, palavra de gentil-homem.
— Nesse caso, até amanhã, Sire.
— Até amanhã, senhor.
— A que horas deseja Vossa Majestade receber-me?
— À hora que o senhor quiser.
— Mas se vier muito cedo receio acordar Vossa Majestade...
— Acordar-me? Mas eu durmo? Já não durmo, senhor. Sonho apenas algumas vezes. Venha pois tão cedo quanto queira, às sete horas. Mas se prepare se os seus mosqueteiros forem culpados!
— Se os meus mosqueteiros forem culpados, Sire, serão postos nas mãos de Vossa Majestade, que disporá deles conforme entender. Vossa Majestade ordena mais alguma coisa? Diga, estou pronto a obedecê-lo.
— Não, senhor, não, e não foi sem razão que me cognominaram Luís, o Justo. Até amanhã, senhor, até amanhã.
— Deus guarde até lá Vossa Majestade!
Se o rei pouco dormiu, o Sr. de Tréville ainda dormiu pior. Mandara avisar naquela mesma noite os seus três mosqueteiros e o seu companheiro para estarem no palácio às seis e meia da manhã. Levou-os consigo sem nada lhes garantir, sem nada lhes prometer, e não lhes ocultou que o valimento deles e mesmo o seu dependiam de um lance de dados.
Chegados ao fundo da escada pequena mandou-os esperar. Se o rei continuasse irritado contra eles, se retirariam sem ser vistos, se o rei consentisse em recebê-los, mandaria chamá-los.
Quando chegou à antecâmara particular do rei o Sr. de Tréville encontrou La Chesnaye que lhe disse que não tinham encontrado o duque de La Trémouille na véspera à noite no seu palácio, que regressara muito tarde para se apresentar no Louvre, que acabava de chegar e estava naquele momento com o rei.
Esta circunstância agradou muito ao Sr. de Tréville, pois assim podia estar certo de que nenhuma sugestão estranha se insinuaria entre o depoimento do Sr. de La Trémouille e ele.
Com efeito, passados apenas dez minutos a porta do gabinete se abriu e o Sr. de Tréville viu sair o duque de La Trémouille, que se aproximou dele e lhe disse:
— Sr. de Tréville, Sua Majestade mandou me chamar para saber como se tinham passado as coisas ontem de manhã no meu palácio. Contei-lhe a verdade, isto é, que a culpa fora dos meus criados e que estava pronto a apresentar-lhe as minhas desculpas. E já que o encontro, digne-se recebê-las e considerar-me sempre um dos seus amigos.
— Sr. Duque — respondeu o Sr. de Tréville —, tinha tanta confiança na sua lealdade que não quis junto de Sua Majestade outro defensor além do senhor. Vejo que não me enganei e congratulo-me por ainda haver na França um homem de quem se possa dizer o que disse, sem nos enganarmos.
— Pronto, pronto! — interveio o rei, que escutara todos estes cumprimentos entre as duas portas. — Diga-lhe apenas, Tréville, uma vez que pretende ser um dos seus amigos, que eu também gostaria de ser dos seus, mas que ele me despreza, que há quase três anos não o via e que só o vejo quando o mando chamar. Diga-lhe tudo isto da minha parte, pois esta são das coisas que um rei não pode dizer pessoalmente.
— Obrigado, Sire, obrigado — respondeu o duque. — Mas que Vossa Majestade acredite que não são aqueles, e não digo isto pelo Sr. de Tréville, que não são aqueles que vê a toda a hora do dia que lhe são mais dedicados.
— Ah, ouviu o que disse! Tanto melhor, duque, tanto melhor — disse o rei, avançando até fora da porta. — Então, Tréville, onde estão os seus mosqueteiros? Disse-lhe anteontem que os trouxesse, porque não o fez?
— Estão lá em baixo, Sire, e com sua licença La Chesnaye irá dizer-lhes que subam.
— Sim, sim, que venham imediatamente, são oito horas e às nove espero uma visita. Vá, Sr. Duque, e volte, sobretudo. Entrei, Tréville.
O duque cumprimentou e saiu. No momento em que abria a porta, os três mosqueteiros e D’Artagnan, acompanhados por La Chesnaye, apareciam no alto da escada.
— Venham, meus bravos — disse o rei —, venham, tenho de brigar com os senhores.
Os mosqueteiros aproximaram-se e inclinaram-se, D’Artagnan ia atrás.
— Como diabo — continuou o rei — conseguiram os quatro pôr fora de combate em dois dias sete guardas de Sua Eminência? É muito, senhores, é muito... Por esse andar, Sua Eminência será obrigado a renovar a sua companhia no espaço de três semanas e eu terei de mandar aplicar os editos com todo o rigor. Um por acaso, vá lá, mas sete em dois dias, repito, é de mais, é muito.
— Por isso, Sire, aqui estão todos contritos e arrependidos a apresentar-lhe as suas desculpas.
— Todos contritos e arrependidos! Hum... — resmungou o rei — não confio nas suas caras hipócritas, há sobretudo lá atrás uma cara de gascão. Aproxime-se, senhor.
D’Artagnan, ao ver que o rei o chamava, aproximou-se com o seu ar mais desesperado.
— Não me disse que era um jovem? É uma criança, Sr. de Tréville, uma verdadeira criança! E foi ele que deu aquela valente estocada a Jussac?
— E aquelas duas a Bernajoux.
— Realmente?
— Sem contar — interveio Athos — que se me não tivesse tirado das mãos de Biscarat eu não teria com certeza a honra de fazer neste momento a minha humilissima reverência a Vossa Majestade.
— Mas então este bearnês é um autêntico mafarrico, com mil demônios, como diria o rei meu pai, Sr. de Tréville. Nessa profissão devem furar muitos gibões e partir muitas espadas. Ora os Gascões continuam a ser pobres, não é verdade?
— Sire, devo dizer que ainda não se encontraram minas de ouro nas suas montanhas, embora o Senhor lhes deva bem esse milagre em recompensa da forma como sustentaram as pretensões do rei seu pai.
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