Jerônimo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor, fizera-se irmão de uma ordem terceira e tratara de ir pondo alguma coisinha de parte. Meteu a filha em um colégio, “que a queria com outro saber que não ele, a quem os pais não mandaram ensinar nada”. Por último, no cortiço em que então moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais confortável; porém, com a morte do seu patrão e com uma reforma estúpida que os sucessores dele realizaram em todo o serviço da pedreira, o colono desgostou-se dela e resolveu passar para outra.
Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois do desastre do seu melhor empregado, andava justamente à procura de um homem nas condições de Jerônimo.
Tomou conta da direção de todo o serviço, e em boa hora o fez, porque dia a dia a sua influência se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu exemplo os companheiros tornavam-se igualmente sérios e zelosos. Ele não admitia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso se demorasse ali tomando o lugar de quem precisava ganhar o pão. E alterou o pessoal da pedreira, despediu alguns trabalhadores, admitiu novos, aumentou o ordenado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando tudo para melhor. No fim de dois meses já o vendeiro esfregava as mãos de contente e via, radiante, quanto lucrara com a aquisição de Jerônimo; tanto assim que estava disposto a aumentar- -lhe o ordenado para conservá-lo em sua companhia. “Valia a pena! Aquele homem era um achado precioso! Abençoado fosse o Machucas que lho enviara!” E começou a distingui-lo e respeitá-lo como não fazia a ninguém.
O prestígio e a consideração de que Jerônimo gozava entre os moradores da outra estalagem donde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consultado e ouvido, quando qualquer questão difícil os preocupava. Descobriam-se defronte dele, como defronte de um superior, até o próprio Alexandre abria uma exceção nos seus hábitos e fazia-lhe uma ligeira continência com a mão no boné, ao atravessar o pátio, todo fardado, por ocasião de vir ou ir para o serviço. Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manuel, tinham entusiasmo por ele. “Aquele é que devia ser o patrão”, diziam. “É um homem sério e destemido! Com aquele ninguém brinca!” E, sempre que a Piedade de Jesus ia lá à taverna fazer as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem-escolhida, bem-medida ou bem-pesada. Muitas lavadeiras tomavam inveja dela, mas Piedade era de natural tão bom e benfazejo que não deva por isso e a maledicência murchava antes de amadurecer.
Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia antes dos outros a sua lavagem à bica do pátio, socava-se depois com uma boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias metidos em um formidável par de chinelos de couro cru, seguia para a pedreira.
A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquela ferramenta movida por um pulso de Hércules valia bem os clarins de um regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do caos opalino das neblinas vultos cor de cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha, para cavar na pedra o pão nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o píncaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se contra o gigante de granito, aquele mísero grupo de obscuros batalhadores.
Jerônimo só voltava a casa ao descair da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra deles. E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos.
Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância.
E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar, quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo.
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