– Então ainda não se pode falar ao homem? – perguntou ele, indo ao balcão entender- -se com o Domingos.
– O patrão está agora muito ocupado. Espere!
– Mas são quase dez horas e estou com um gole de café no estômago!
– Volte logo!
– Moro na cidade nova. É um estirão daqui!
O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia:
– O homem que aí está, seu João, diz que se vai embora!
– Ele que espere um pouco, que já lhe falo! – respondeu o vendeiro no meio de uma carreira. – Diga-lhe que não vá!
– Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... – observou o Hércules com a sua voz grossa e sonora.
– Ó filho, almoce aí mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia estar aviado!
– Pois vá lá! – resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar na casa de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que aí se apresentavam pela primeira vez.
E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista dos pratos.
– Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de vinho.
– Quer verde ou virgem?
– Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo!
Meia hora depois, quando João Romão se viu menos ocupado, foi ter com o sujeito que o procurava e assentou-se defronte dele, caindo de fadiga, mas sem se queixar, nem se lhe trair a fisionomia o menor sintoma de cansaço.
– Você vem da parte do Machucas? – perguntou-lhe. – Ele falou-me de um homem que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lajedo.
– Sou eu.
– Estava empregado em outra pedreira?
– Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me dela e quero passar adiante.
– Quanto lhe dão lá?
– Setenta mil-réis.
– Oh! Isso é um disparate!
– Não trabalho por menos...
– Eu, o maior ordenado que faço é de cinquenta.
– Cinquenta ganha um macaqueiro...
– Ora! Tenho aí muitos trabalhadores de lajedo por esse preço!
– Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não encontra por cinquenta mil-réis quem dirija a broca, pese a pólvora e lasque fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres!
– Sim, mas setenta mil-réis é um ordenado impossível!
– Nesse caso vou como vim... Fica o dito por não dito!
– Setenta mil-réis é muito dinheiro!...
– Cá por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres, como o que sofreu sua pedreira a semana passada! Não falando na vida do pobre de Cristo que ficou debaixo da pedra!
– Ah! O Machucas falou-lhe no desastre?
– Contou-mo, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem soubesse fazer o serviço!
– Mas setenta mil-réis é impossível. Desça um pouco!
– Por menos não me serve... E escusamos de gastar palavras!
– Você conhece a pedreira?
– Nunca a vi de perto, mas quis me parecer que é boa. De longe cheirou-me a granito.
– Espere um instante.
João Romão deu um pulo à venda, deixou algumas ordens, enterrou um chapéu na cabeça e voltou a ter com o outro.
– Ande a ver! – gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se esvaziara de todo.
O cavouqueiro pagou doze vinténs pelo seu almoço e acompanhou-o em silêncio.
Atravessaram o cortiço.
A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéu de palha, apesar das toldas que se armaram. Um calor de cáustico mordia-lhes os toutiços em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se delas naquele rescaldo; aquela digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar, parecia derreter-se como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa monologava, resmungando numa insistência de idiota, ao lado da Marciana que, com o seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas monótonas do sertão:
“Maricas tá marimbando,
Maricas tá marimbando,
Na passage do riacho
Maricas tá marimbando.”
A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e junto dela, a melancólica senhora dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar no presídio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem linfático, batia na tábua um par de calças, no ritmo cadenciado e miúdo de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez em quando, suspendia o lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia-lhe aos lábios.
Da casinha número 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das Dores que principiava o seu serviço; não sabia engomar sem cantar. No número 7 Nenen cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo da estalagem saía de espaço a espaço uma nota áspera de trombone.
O vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apanhava roupa do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais em evidência.
– Não bula, hein?!... – gritou ela, rápido, erguendo-se tesa.
E, dando com João Romão:
– Eu logo vi. Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar na venda, o safado rouba no peso! Diabo do galego! Eu não te quero, sabe?
O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugiu, porque ela se armara com um regador cheio de água.
– Vem pra cá, se és capaz! Diabo da peste!
João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro.
– O senhor tem aqui muita gente!... – observou-lhe este.
– Oh! – fez o outro, sacudindo os ombros, e disse depois com empáfia: – Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é tudo gente séria! Não há chinfrins nesta estalagem; se aparece uma rusga, eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos entrou cá a polícia, nem nunca a deixaremos entrar! E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muita boa!
Tinham chegado ao fim do pátio do cortiço e, depois de transporem uma porta que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que havia antes da pedreira.
– Vamos por aqui mesmo que é mais perto – aconselhou o vendeiro.
E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e trescalante.
Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava a luz irreconciliável de dezembro, num dia sem nuvens. A pedreira, em que ela batia de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martirizar a vista para descobrir as nuanças da pedra; nada mais que uma grande mancha branca e luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho miúdo, que ao longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela parte de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros tons mais do que nódoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro.
À proporção que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno ia se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças, algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras já prontas para seguir, à espera do animal, e outras enfim com os braços para o ar, como se acabassem de ser despejadas naquele instante. Homens labutavam.
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