À esquerda, por cima de um vestígio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquele sol sedento, havia uma ponte de tábuas, onde três pequenos, quase nus, conversavam assentados, sem fazer sombra, iluminados a prumo pelo sol do meio-dia. Para adiante, na mesma direção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre colunas de pedra tosca; aí muitos portugueses trabalhavam de canteiro, ao barulho metálico do picão que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objetos quebrados, entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja escancarava uma goela infernal, de onde saíam pequenas línguas de fogo, irrequietas e gulosas.
João Romão parou à entrada da oficina e gritou para um dos ferreiros:
– Ó Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão!
Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.
– Já lá fui ver – respondeu o Bruno. – Não vale a pena consertá-lo; está todo comido de ferrugem! Faz-se-lhe um novo, que é melhor!
– Pois veja lá isso, que a lanterna está a cair!
E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto atrás recomeçava o martelar sobre a bigorna.
Em seguida via-se uma miserável estrebaria, cheia de capim seco e excremento de bestas, com lugar para meia dúzia de animais. Estava deserta, mas, no vivo fartum exalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquela noite. Havia depois um depósito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de oficina de carpinteiro, tendo à porta troncos de árvore, alguns já serrados, muitas tábuas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio.
Daí à pedreira restavam apenas uns cinquenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal.
Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O membrudo cavouqueiro havia chegado à fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, mediu-o de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo.
A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela ciclópica nudez com um efeito de teias de aranha. Em certos lugares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipício, miseráveis tábuas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quais uns atrevidos pigmeus de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante.
O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lástima. O seu gesto desaprovava todo aquele serviço.
– Veja lá! – disse ele, apontando para certo ponto da rocha. – Olhe para aquilo! Sua gente tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atacá-la justamente por aquele outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que eles têm tirado de lá: umas lascas, uns calhaus que não servem para nada! É uma dor de coração ver estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer dessa cascalhada que aí está senão macacos? E brada aos céus, creia! Ter pedra desta ordem para empregá-la em macacos!
O vendeiro escutava-o em silêncio, apertando os beiços, aborrecido com a ideia daquele prejuízo.
– Uma porcaria de serviço! – continuou o outro. – Ali onde está aquele homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem aí o senhor capaz de fazer isso? Ninguém; porque é preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a pólvora não for muito bem-medida, nem só não se abre o veio, como ainda sucede ao trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! É preciso conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta pedreira! Boa é ela, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é muito em pé! Quem lhe lascar fogo não pode fugir senão para cima pela corda, e se o sujeito não for fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz!
E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o próprio cascalho, um paralelepípedo que estava no chão:
– Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha!
Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ela dava depois, formando um ângulo obtuso, é que se via quanto era grande. Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a mata.
– Que mina de dinheiro!... – dizia o homenzarrão, parando entusiasmado defronte do novo pano de rocha viva que se desdobrava na presença dele.
– Toda esta parte que se segue agora – declarou João Romão – ainda não é minha.
E continuaram a andar para diante.
Deste lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam à sombra delas, indiferentes àqueles dois. Viam-se panelas ao fogo, sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais. De mulher nem sinal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de cócoras defronte uns dos outros, uma sardinha na mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa de água.
– Sempre o mesmo serviço malfeito e maldirigido!... – resmungou o cavouqueiro.
Entretanto, a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam à sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pescoço intumescido de cordoveias grossas como enxárcias de navio, a boca aberta, a respiração forte e tranquila de animal sadio, num feliz e pletórico resfolgar de besta cansada.
– Que relaxamento! – resmungou de novo o cavouqueiro. – Tudo isto está a reclamar um homem teso que olhe a sério para o serviço!
– Eu nada tenho que ver com este lado! – observou Romão.
– Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olará!
– Abusam, porque tenho de olhar pelo negócio lá fora...
– Comigo aqui é que eles não fariam cera. Isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem-pago, ter para a sua comida à farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta por aí quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e verá!
– O diabo é que você quer setenta mil-réis... – suspirou João Romão.
– Ah! Nem menos um real!... Mas comigo aqui há de ver o que lhe faço entrar para algibeira! Temos cá muita gente que não precisa estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo? Aquilo é serviço para descanso; é serviço de criança! Em vez de todas aquelas lesmas, pagas talvez a trinta mil-réis...
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