1 ...6 7 8 10 11 12 ...21 O general era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretensão marcial, não havia no seu caráter a mínima falha. Demais, aquela necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se tratava dos interesses delas.
Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para evitar despesas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo dia; e assim o namoro foi correndo até ali.
Enfim - dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos - a coisa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos descontar esta letra.
A satisfação resignada do general era porém, falsa; ao contrário: ele estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro momento azado, lá dizia ele:
— É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho que casar uma filha!
Ao que Castro interrogava:
— Qual delas?
— A Ismênia, a segunda, respondia Albernaz e logo acrescentava: tu é que és feliz: só tiveste filhos.
— Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malícia, aprendi a receita. Por que não fizeste o mesmo?
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às lojas de louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa, porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundância e riqueza que traduzisse o seu grande contentamento,
Na manhã do dia da festa comemorativa do pedido, Dona Maricota amanheceu cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande alegria, ela cantarolava uma velha ária, uma coisa do seu tempo de moça e as filhas que sentiam nisto sinal certo de alegria corriam a ela, pedindo-lhe isto ou aquilo.
Muito ativa, muito diligente, não havia dona-de-casa mais econômica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas. Logo que despertou, pôs tudo em atividade, as criadas e as filhas. Vivi e Quinota foram para os doces; Lalá e Zizi auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos, enquanto ela e Ismênia iam arrumar a mesa, dispô-la com muito gosto e esplendor. O móvel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas do dia. A alegria de Dona Maricota era grande; ela não compreendia que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples fato de ter descontado uma letra, como ele dizia. Vinha mais profundamente dos seus sentimentos maternos e de família.
Ela arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indiferente,
— Mas, minha filha, dizia ela, até parece que não é você quem se vai casar! Que cara! Você parece aí uma "mosca-morta".
— Mamãe, que quer que eu faça?
— Não é bonito rir-se muito, andar aí como uma sirigaita, mas também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas logo lhe tornava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em cair naquela doentia lassidão que lhe era própria.
Veio muita gente. Além das moças e as respeitáveis mães, acudiram ao convite do general, o Contra-Almirante Caldas, o doutor Florêncio, engenheiro das águas, o Major honorário Inocêncio Bustamante, o Senhor Bastos, guarda-livros, ainda parente de Dona Maricota, e outras pessoas importantes. Ricardo não fora convidado porque o general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa séria; Quaresma o fora, mas não viera; e Cavalcânti jantara com os futuros sogros,
Às seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismênia, cumprimentando-a, não sem um pouco de inveja no olhar.
Irene, uma alourada e alta, aconselhava:
— Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.
Tratava-se do enxoval. Todas elas, embora solteiras, davam conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e as que podiam ser dispensadas. Estavam ao par.
A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:
— Eu, ontem, vi na Rua da Constituição um dormitório de casal, muito bonito, você por que não vai ver, Ismênia? Parece barato.
A Ismênia era a menos entusiasmada, quase não respondia às perguntas; e, se as respondia, era por monossílabos. Houve um momento em que sorriu quase com alegria e abandono. Estefânia, a doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma confidência. Quando deixou de segredar-lhe, assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto:
— Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...
Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com parcimônia: qual o quê?
Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma parte dos velhos rodeavam Cavalcânti, muito solene, dentro de um grande fraque preto.
— Então, doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um cumprimento.
— É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os embargos - fui de um heroísmo!...
— Conhece o Chavantes? perguntava um outro.
— Conheço. Um crônico, um pândego...
— Foi seu colega?
— Foi, isto é, ele é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano.
Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro.
— É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no "deve" e "haver". Hoje, torço a orelha e não sai sangue.
— Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente Cavalcânti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e caro, que exige cadávares, aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...
— Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns, Digo-lhe o que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!
— Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcânti.
— Em engenharia. Está no Maranhão, na estrada de Caxias.
— Boa carreira.
Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural.
Para aquela gente toda, Cavalcânti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dele atualmente, as coisas que porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina.
Para o lado de Cavalcânti, que se achava na sala de visitas, vieram os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando, cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o doutor Florêncio e o Capitão de Bombeiros Sigismundo.
Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era interessantíssimo, Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe davam comissões de embarque. É curiosa essa coisa das administrações militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos,
Читать дальше