1 ...8 9 10 12 13 14 ...21 Tinham começado a partida, quando Dona Quinota, uma das filhas do general, atravessou a sala e foi beber água; Caldas, coçando um dos favoritos, perguntou à moça:
— Então, Dona Quinota, quedê o Genelício?
A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muxoxo e respondeu com falso mau humor:
— Ué! Sei lá! Ando atrás dele?
— Não precisa zangar-se, Dona Quinota; é uma simples pergunta, advertiu Caldas,
O general que examinava atentamente as cartas recebidas, interrompeu a conversa com voz grave:
— Eu passo.
Dona Quinota retirou-se. Este Genelício era o seu namorado. Parente ainda de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na família. A sua candidatura era favorecida por todos. Dona Maricota e o marido enchiam- no de festas. Empregado do Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro. Não havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o, conversava com ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de nascimento, era um soneto que começava sempre por - "Salve" - e acabava também por - "Salve! Três vezes Salve!".
O modelo era sempre o mesmo; ele só mudava o nome do ministro e punha a data.
No dia seguinte, os jornais falavam do seu nome, e publicavam o soneto.
Em quatro anos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.
Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas diárias. No intuito de anunciar aos ministros e diretores que tinha uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais longos artigos sobre contabilidade pública. Eram meras compilações de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de autores franceses ou portugueses.
Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande conta o seu saber e ele vivia na seção cercado do respeito de um gênio, um gênio do papelório e das informações. Acresce que Genelício juntava à sua segura posição administrativa, um curso de direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de impressionar favoravelmente às preocupações casamenteiras do casal Albernaz.
Fora da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre físico fazia cômico, mas que a convicção do alto auxílio que prestava ao Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!...
O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das "mãos" fazia-se um breve comentário ou outro, e no começo ouviam-se unicamente as "falas" sacramentais do jogo: "solo, bolo, melhoro, passo." Feitas elas, jogava-se em silêncio; da sala, porém, vinha o ruído festivo das danças e das conversas.
— Olhem quem está aí!
— O Genelício, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?
Deixou o chapéu e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos. Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos. Era um escriturário.
— Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negócios.
— Vão bem? perguntou Florêncio.
— Quase garantido. O ministro prometeu... Não há nada, estou bem "cunhado"!
— Estimo muito, disse o general.
— Obrigado. Sabe de uma coisa, general?
— O que é?
— O Quaresma está doido.
— Mas... o quê? Quem foi que te disse?
— Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde".
— Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido.
— Mas não é só, general, acrescentou Genelício. Fez um ofício em tupi e mandou ao ministro.
— É o que eu dizia, fez Albernaz.
— Quem é? perguntou Florêncio.
— Aquele vizinho, empregado do arsenal; não conhece?
— Um baixo, de pince-nez?
— Este mesmo, confirmou Caldas.
— Nem se podia esperar outra coisa, disse o doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura...
— Pra que ele lia tanto? indagou Caldas.
— Telha de menos, disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
— Ele não era formado, para que meter-se em livros?
— É verdade, fez Florêncio.
— Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou Sigismundo.
— Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título "acadêmico" ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?
— Decerto, disse Albernaz.
— Decerto, fez Caldas.
— Decerto, disse também Sigismundo.
Calaram-se um instante, e as atenções convergiram para o jogo.
— Já saíram todos os trunfos?
— Contasse, meu amigo.
Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silêncio. Cavalcânti ia recitar. Atravessou a sala triunfantemente, com um largo sorriso na face e foi postar-se ao lado do piano. Zizi acompanhava. Tossiu e, com a sua voz metálica, apurando muito os finais em "s", começou:
A vida é uma comédia sem sentido,
Uma história de sangue e de poeira
Um deserto sem luz...
E o piano gemia.
Capítulo IV: Desastrosas consequências de um requerimento
Os acontecimentos a que aludiam os graves personagens reunidos em torno da mesa de solo, na tarde memorável da festa comemorativa do pedido de casamento de Ismênia, se tinham desenrolado com rapidez fulminante. A força de ideias e sentimentos contidos em Quaresma se havia revelado em atos imprevistos com uma sequência brusca e uma velocidade de turbilhão. O primeiro fato surpreendeu, mas vieram outros e outros, de forma que o que pareceu, no começo, uma extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia declarada.
Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrir-se a sessão da câmara, o secretário teve que proceder à leitura de um requerimento singular e que veio a ter uma fortuna de publicidade e comentário pouco usual em documentos de tal natureza.
O burburinho e a desordem que caracterizam o recolhimento indispensável ao elevado trabalho de legislar não permitiram que os deputados o ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam próximos à mesa, ao ouvi-lo, prorromperam em gargalhadas, certamente inconvenientes à majestade do lugar. O riso é contagioso. O secretário, no meio da leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já ria-se o presidente, ria-se o oficial da ata, ria-se o contínuo - toda a mesa e aquela população que a cerca riram-se da petição, largamente, querendo sempre conter o riso, havendo em alguns tão franca alegria que as lágrimas vieram.
Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço, de trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma penosa tristeza, ouvindo aquele rir inofensivo diante dela. Merecia raiva, ódio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava à mesa da câmara, mas não aquele recebimento hilárico, de uma hilaridade inocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir de uma palhaçada, de uma sorte de circo de cavalinhos ou de uma careta de clown .
Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nele um motivo para riso franco e sem maldade. A sessão daquele dia fora fria e, por ser assim, as seções dos jornais referentes à câmara, no dia seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos os tons.
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