1 ...7 8 9 11 12 13 ...21 Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado "Lima Barros". Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha, teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio. Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal "Lima Barros" fizesse parte da esquadrilha do alto Uruguai. Consultou o comandante.
— Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para a flotilha do Rio Grande.
Ei-lo a fazer malas para o alto Uruguai, onde chegou enfim, depois de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal "Lima Barros". Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia khe veio a idéia de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e submetido a conselho.
O "Lima Barros" tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai.
Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no "encostado", como se diz na gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o infinito rosário de repartiçôes e eram sempre indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar. Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos, escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos e pelos olhos.
Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era renitente, teimoso mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.
Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser tenente honorário e também: da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major, visto que dois galões mais outros dois fazem quatro - o que quer dizer: major.
Conhecedor dos estudos meticulosos do almirante, Bustamante fez a sua consulta.
— Assim de pronto, não sei. Não é a minha especialidade o Exército, mas vou ver. Isto também anda tão atrapalhado!
Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos, que lhe davam um ar de "comodoro" ou de chacareiro português, pois era forte nele o tipo lusitano.
— Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta disciplina!
— Não há mais gente que preste, disse Bustamante.
Sigismundo por aí aventurou também a sua opinião, dizendo:
— Eu não sou militar, mas...
— Como não é militar? fez Albernaz, com ímpeto. Os senhores é que são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha, Caldas?
— Decerto, decerto, fez o almirante cofiando os favoritos.
— Como ia dizendo, continuou Sigismundo, apesar de não ser militar, eu me animo a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde está um Porto Alegre, um Caxias?
— Não há mais, meu caro, confirmou com voz tênue o doutor Florêncio.
— Não sei por que, pois tudo hoje não vai pela ciência?
Fora Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e retrucou-lhe com certo calor:
— Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de "xx" e "yy" em Curupaiti, hein Caldas? hein Inocêncio?
O doutor Florêncio era o único paisano da roda. Engenheiro e empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola, Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um engenheiro. Morando perto de Albernaz, era raro que não viesse toda a tarde jogar o solo com o general. O doutor Florêncio perguntou:
— O senhor assistiu, não foi, general?
O general não se deteve, não se atrapalhou, não gaguejou e disse com a máxima naturalidade:
— Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vésperas. Mas tive muitos amigos lá: o Camisão, o Venâncio...
Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janela da sala onde estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava circunscrito aos fundos dos quintais das casas vizinhas com as suas cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes vistas sem fim. O sol já tinha desaparecido do horizonte e as tênues luzes dos bicos de gás e dos lampiões familiares começavam a acender-se por detrás das vidraças.
Bustamante quebrou o silêncio:
— Este país não vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento, pedindo honras de tenente-coronel, está no ministério há seis meses!
— Uma desordem, exclamaram todos.
Era noite. Dona Maricota chegou até onde eles estavam, muito ativa, muito diligente e com o rosto aberto de alegria.
— Estão rezando? E logo ajuntou: Dão licença que diga uma coisa ao Chico, sim?
Albernaz saiu fora da roda dos amigos e foi até a um canto da sala, onde a mulher lhe disse alguma coisa em voz baixa. Ouviu a mulher, depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes termos:
— Se não dançam é porque não querem. Estou pegando alguém?
Dona Maricota aproximou-se dos amigos do marido e explicou:
— Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguém tira par, ninguém toca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!
— Bem; eu vou lá, disse Albernaz.
Deixou os amigos e foi à sala de visitas dar começo ao baile.
— Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!
E ele mesmo em pessoa ia juntando os pares: "Não, general, já tenho par", dizia uma moça. "Não faz mal", retrucava ele, "dance com o Raimundinho; o outro espera".
Depois de ter dado início ao baile, veio para a roda dos amigos suado, mas contente.
— Isto de família! Qual! A gente até parece bobo, dizia. Você é que faz bem, Caldas; não se quis casar!
— Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?
— Vamos jogar o solo, convidou Albernaz.
— Somos cinco, como há de ser? observou Florêncio.
— Não, eu não jogo, disse Bustamante.
— Então jogamos os quatro de garrancho? lembrou Albernaz.
As cartas vieram e também uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florêncio dar. Começaram. Albernaz tinha um ar atento quando jogava: a cabeça lhe caía sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande expressão de reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava com a serenidade de um lorde-almirante numa partida de whist. Sigismundo jogava com todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca e a cabeça do lado para fugir à fumaça. Bustamante fora à sala ver as danças.
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