Na outra margem do rio apareceu outro macaco de forma parecida mas com cores diferentes. Esse tinha a cara negra, costeletas e barba brancas que continuavam no peito e parte dos braços. Sua cor era mais enegrecida e tinha uma mancha triangular avermelhada-alaranjada no lombo. Era maior que o anterior e bem mais robusto 12 12 Fauna: Cercopitemo diana, Cercopithecus diana
. Bebeu um pouco de água, levando-a à boca com a mão e desapareceu. Fiquei um pouco observando os outros a jogar e saltar. Era uma experiência única, que nunca pensei que chegaria a viver. Mais uma vez me lembrei de meus amigos mortos e de como eles curtiriam estar vendo isto, principalmente o jovial Alex, sempre tão curioso sobre todas as coisas. Agora com quem comentaria estes momentos, com quem os compartilharia? Não havia ninguém que os houvesse vivido comigo, que pudesse entendê-los. Não! Não devia pensar nisso, não me ajudava a seguir adiante e agora o que precisava era juntar a maior quantidade de energia possível para poder sobreviver.
Sair desta maldita selva deveria ser o meu único objetivo. Escapar deste inferno verde.
Descalcei os tênis, torcendo-os um pouco para que a água se escorresse e os enganchei na ponta de um galho para que secassem. Então, peguei a garrafa de água e procurei um local com água corrente para enchê-la. Parecia-me haver lido que era pior coletar de lugares onde a água estivesse parada porque haveria mais possibilidades de que não fosse salubre ou tivesse algum tipo de bichos. Claro que podia ter me lembrado disso antes de beber. Meu corpo inteiro não parava de arder, ainda que com menor intensidade do que antes. Sentia a coxa latejar e quando me virei para ver se havia algum ferimento, localizei uma sanguessuga que ficou grudada à minha perna. Era uma espécie de lesma, talvez mais fina. Primeiro me assustei, logo reagi e pensei em como soltá-la. Se mal me lembrava, podia-se soltar as sanguessugas com sal ou queimando-as. Saquei o isqueiro e aproximei a chama do animal, até que ele se encolhesse, momento em que aproveitei para desgrudá-la com a navalha. Onde havia estado agora só restava uma mancha vermelha, e uma gota de sangue exsudava da borda. Queimei a ponta da navalha com o isqueiro e cauterizei a ferida com cuidado. Não tinha nem ideia se as sanguessugas infectavam ou não a ferida que produziam, mas não queria me arriscar. Doeu tanto que tive que fazer grandes esforços para não gritar com todas as minhas forças. Verifiquei o resto do meu corpo para ver se não tinha mais alguma, mas era a única. Agora na perna tinha a forma da ponta da minha navalha gravada ao fogo. Ia fazer uma tremenda bolha. Talvez não devesse ter feito essa barbaridade.
A preguiça tomou o controle do meu corpo e decidi me dar uma manhã livre. Tantas emoções seguidas cansavam, estava destroçado e o corpo me pesava enormemente. Procurei um local com sombra e quando me sequei, vesti a roupa e usei a camiseta de lembrança da Namíbia que levava na mochila para cobrir toda a cabeça, inclusive o rosto, para evitar os incômodos e abundantes mosquitos que demarcavam as margens. Antes de me deitar, observei um arbusto que havia por perto, havia visto já diversos como este, com um virtuoso fruto de cor carmim com pequenas sementes azuladas 13 13 Flora: Cola digitata
. Seria comestível? Esmaguei uma formiga desnorteada que ainda não tinha conseguido sacudir da roupa. Fechei os olhos e me deixei levar por um estado de sonolência, de torpor; o calor e a umidade produziam peso nos músculos e na vontade.
Um disparo, uma rajada de alguma arma automática, mais disparos. Pus-me de pé num salto. Ouvia-se na outra margem do rio, ainda que distante. Agora sim que não estava imaginando, iam me encontrar a qualquer momento. Subitamente recuperei a consciência de que minha situação não me permitia relaxar, e que não manter todos os meus sentidos em alerta constante seria certamente a minha perdição.
Rapidamente, catei todas as coisas, guardei a camiseta na mochila, calcei as meias e os tênis e peguei o cajado. Ainda estavam molhados, mas nesse momento não tinha tempo de me preocupar com essas minúcias. Decidi que o melhor caminho possível para chegar a algum lugar seria continuar pelo leito do rio, mas como segui-lo ao lado da margem me parecia muito perigoso, adentrei a selva mais uma vez para passar despercebido entre a folhagem e andar quatro a cinco metros paralelo ao rio. Era um mundo fechado, onde em qualquer direção não via mais que um muro verde impenetrável, sem saída alguma. Quando muito, via três ou quatro metros de distância diante de mim. Logo perdi o rio e, mais uma vez, encontrei-me a caminho de lugar nenhum.
Estive andando a um ritmo às vezes forte e outras vezes mais suave durante toda a tarde com escassos momento de descanso. Justamente para recobrar um pouco o fôlego e escutar se ouviam-se mais disparos. Tive que aguentar permanentemente o som semelhante ao produzido quando se pisa em um charco que faziam meus tênis em cada passo que dava e esporádicos avisos de cãibra na panturrilha. A densidade da folhagem aumentava em alguns momentos, sumindo nas sombras de alguns lugares. Havia mosquitos por todos os lados, não deixavam de me incomodar como se fosse uma batalha sem fim. Às vezes me faziam lembrar os kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial, lançando-me o ferrão como seu objetivo, sem lhes importar a vida. Os mosquitos eram iguais, jogando-se sobre meu corpo de forma contínua e sem lhes importar as baixas que causavam meus tapas, usando minhas mãos à guisa de artilharia antiaérea. Alguns eram tão grandes que mais que caças de combate pareciam gigantescos bombardeiros, cuja presença propriamente dita já causava apreensão no inimigo. Quando os via aproximarem-se ficava imediatamente tenso, preparado para me esquivar deles. Sempre havia algum com apetite e tinha uma infinidade de picadas pelos braços e pernas, ali onde minha roupa não cobria meu corpo. Algumas estavam inclusive sobre as próprias picadas que as formigas me haviam feito ao acordar. Era uma batalha que estava perdida de antemão, uma luta banal, inútil, já que eles não tinham fim e eu estava cada vez mais cansado. Incomodaram-me tanto que decidi cobrir as partes onde não tinha roupa com terra úmida, formando uma barreira impenetrável para eles. Essa ideia fugaz me salvou. Era difícil me movimentar, sobretudo quando secava, mas seus ataques contínuos eram piores. Graças a esse truque pude me esquecer dos insetos implacáveis durante um bom tempo. Se não consegui a vitória, ao menos uma trégua temporária. Além disso, tive o efeito surpreendente de conseguir que parassem de me picar onde as formigas haviam estado. Alguma sorte, afinal.
Não parava de observar tudo ao meu redor, tinha a sensação constante de estar sendo seguido, que estava cada vez mais encurralado, acuado em uma selva ilimitada. Inclusive, parecia-me ouvir passos e vozes atrás de mim ou ver rostos rápidos de guerrilheiros olhando-me com frieza entre as árvores, vigiando sem cessar. A verdade é que não cheguei a ver ninguém com clareza, nem sequer pude verificar nenhum rastro de sua presença na região. Tinha a impressão de que as árvores se dobravam sobre minha cabeça, aprisionando-me mais e mais em uma cela de madeira viva. Não sabia se estava ficando paranoico ou o quê, mas tinha que conseguir me acalmar para sobreviver nesta selva desconhecida e mortal.
Nesse deambular demente me deparei com um espetáculo dantesco. O que parecia ter sido uma família de primatas, do tamanho de um chimpanzé ou semelhante, jazia em uma clareira sem mãos, pés e cabeças em meio a grandes poças de sangue ressecado e rodeados por miríades de moscas e todo tipo de insetos e animais carniceiros. O fedor que expeliam era insuportável e não pude evitar o vômito que subiu instantaneamente pela garganta. Juntei coragem e voltei a olhar. Havia dois que deviam ser adultos e um menorzinho. Não parecia haver nenhuma cria. O que não sabia era por que não foram capturados, presos ou por que não foram levados para serem vendidos no mercado ilegal. Sabia que havia determinadas partes de animais que se vendiam muito bem como afrodisíacos nos países asiáticos: chifres de rinocerontes, ossos de tigres e coisas assim. Na melhor das hipóteses, seria algo desse tipo. Decidi me afastar desse lugar maldito o mais rápido possível. Essa descoberta não apenas me demonstrou mais uma vez a crueldade humana, mas também me fez ver que andava por zonas frequentadas por caçadores furtivos, certamente pouco amigáveis com estranhos.
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