Fiquei mais um pouco sem me mover, escutando, até que me convenci de que era essa que havia escutado e o resto havia sido fruto de minha imaginação. Levantei-me devagar e observando atentamente o solo em busca de outra serpente, mas a que via era a única. Pelo menos a única que localizei. No princípio pensei em dar uma volta e me distanciar, mas logo me lembrei de que sempre diziam que a carne de serpente tinha gosto semelhante à de frango, que era muito boa. Ou assim contavam os avós como anedotas da Guerra Civil e da fome que passaram. Parecia uma boa oportunidade de conseguir comida e, se tiver gosto bom, melhor ainda. Procurei uma vara comprida com ponta em forma de "V" para tentar prender-lhe a cabeça. Também tirei a navalha do bolso, a abri e a coloquei no cinto da bermuda. Encontrei um galho caído adequado e lhe dei a forma que buscava, recortando uma das extremidades em forma de V e sem perder a serpente de vista. O processo de preparação me pareceu interminável e me esgotou ao extremo, ainda que na realidade não exigisse nenhum esforço físico considerável.
Quando estava preparado, me aproximei sorrateiramente da serpente. Ela não pareceu se dar conta ou me ignorou, mas o caso é que não prestou a menor atenção em mim. Quando estava a meio metro levantei a vara e a golpeei na cabeça com toda minha força. Com o primeiro golpe ela ficou meio dependurada, então lhe apliquei mais dois golpes até que caísse ao solo. Logo lhe enganchei a cabeça com a forquilha da vara e a apertei bem forte contra o solo. A serpente se agitava convulsivamente, sibilando sem parar e eu estava aterrorizado. Se a soltasse para tomar distância com a vara ela poderia me atacar, a outra opção seria me aproximar mais e cravá-la com a navalha. Juntando coragem, aproximei-me mais e pisei na cauda com força, apertando-a contra o chão em uma tentativa de mantê-la quieta. Agachei-me e cravei a navalha logo abaixo da cabeça do ofídio, junto da vara, deixando-a fincada ao chão. Ainda assim continuava se agitando, de modo que descravei a navalha e cortei o pescoço dela, separando a cabeça do resto do corpo. Logo dei um pulo para trás temendo, ignorante, que ela ainda pudesse me atacar. A cauda continuava batendo sem parar, cuspindo sangue por onde antes se encontrava a cabeça. Golpeei-a algumas vezes com a vara, mas não fez diferença, então decidi deixá-la um momento. Em questão de menos de meio minuto parou de se mover paulatinamente até que ficasse completamente parada. Dei-lhe ainda alguns toques com a vara mas ela não mais se movia. Estava definitivamente morta. Por fim pude respirar tranquilo.
Meu primeiro triunfo na selva. O homem havia dominado a besta. Senti-me totalmente eufórico, por um momento todos os meus problemas se dissolveram como açúcar em um copo de leite quente. Agora sabia que subsistiria e conseguiria sair dali. Era um autêntico aventureiro, um sobrevivente nato. E nada poderia evitar que encontrasse a saída nesse labirinto verde e que regressasse a casa, ao lar. Havia sido desafiado pela mãe Natureza e havia demonstrado meu valor, minha capacidade de adaptação e de sobrevivência. Agora sabia, eu era o vencedor deste combate desigual contra mim mesmo e contra os elementos adversos.
Peguei a serpente e a abri pela metade com a navalha, tirando-lhe as tripas o melhor que pude, não sem que me causasse bastante asco. Para isso, segurei por uma ponta e a girei sobre mim mesmo a toda velocidade, dando giros rápidos e as tripas saíam voando em todas as direções. Logo pensei que isso ia contra meu plano de ser discreto e não chamar atenção, mas já havia restos de serpente por todos os lados e não tinha a menor vontade de catá-los. O que restou, terminei de limpar com a navalha, me causando alguma ânsia de vômito, já que era nojento. Depois a esfolei. Quando estava pronta me dei conta de um problema. Não podia fazer fogo para cozinhá-la pois revelaria minha existência e minha posição. Teria de comê-la crua. Reparei na carne sanguinolenta. Cortei um bom pedaço e o meti na boca. Se os animais comiam cru eu também podia. Mastiguei algumas vezes e cuspi tudo. Estava repugnante! Tinha uma consistência de plástico, como se estivesse tentando comer uma boneca de minhas irmãs ou uma cartilagem meio desfeita. Sempre gostei de carne bem passada, não conseguia comê-la mal passada e assim, completamente crua, menos ainda. O que mais me causava repulsa eram as coisas de consistência como essa carne: pele de frango mal passada, toucinho, dobradinha…
Totalmente desiludido, catei todos os restos da serpente e os da minha comida e os enterrei. Coloquei umas folhas por cima para disfarçá-lo melhor. De que me adianta poder conseguir comida se não posso comê-la? Correr o risco de que uma serpente me morda e me mate, para que? Além disso, havia o problema da água. Tinha que encontrar algo porque não desejava ter uma sede terrível e só me sobravam dois refrescos. Deixei-me cair no chão, suando copiosamente pelo esforço realizado de capturar a serpente. Derrotado, bebi um dos refrescos e joguei a lata fora. Que me descubram, afinal de contas é melhor morrer crivado de balas do que de fome, demora menos. Ademais, havia espalhado tripas de serpente em um círculo de dois metros ao meu redor. Adeus triunfador, adeus sobrevivente nato, olá fracassado que ia morrer em um jardim selvagem. Era o que merecia, então não podia me queixar. Havia matado os meus dois melhores amigos. De todo modo, sabia que havia visto algo na televisão sobre a água na selva, me lembrava que diziam que era fácil conseguir em um lugar, de uma forma correta, mas não me lembrava onde.
Durante um tempo, que não calculei, fiquei ali, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com a mente em branco, me deixando levar. Resignação, conformismo, abandono, renúncia à vida. O acidente aéreo com a morte de Alex, ver como metralharam Juan, a euforia da serpente e a decepção posterior, o cansaço, o sonho… coisas demais em praticamente vinte e quatro horas, emoções demasiado intensas. Por que Juan teve que ser tão estúpido e sair correndo daquele jeito? Por que me havia deixado sozinho? Pelo menos se estivéssemos os dois tudo seria diferente; mas não, tive que tentar fugir desse modo tão… tão… Queria voltar para casa, fechar os olhos e que ao abri-los novamente estivesse em minha cama e tudo tivesse sido um pesadelo muito realista, um sonho ruim como qualquer outro, uma anedota para contar quando estivesse à tarde com a namorada e os amigos. Comecei a chorar, mas quase não caíam lágrimas de meus olhos.
Perdido, desanimado, desiludido e quase desmaiando de cansaço e sono. Não sabia o que fazer. Por fim, por puro automatismo, enterrei a lata que havia jogado no chão e me levantei para seguir andando, ainda que agora a um ritmo muito mais tranquilo, deixando-me levar, quase arrastando os pés. Fui andando e parando intermitentemente até que dessem oito horas da tarde. As paradas eram cada vez de maior duração, os momentos de andar cada vez mais curtos. Fazia de cajado a vara que havia usado contra a serpente, assim descarregava a pressão do joelho lesionado, ainda que nesses momentos já nem sentia as pernas. Andar por andar, sem tentar sequer fixar bem o meu rumo, no fim das contas, não sabia com certeza como fazer e quase podia dizer que não me fazia diferença. Por que tive que convencê-los a vir aqui, por quê? Nunca escutava ninguém, sempre tendo que prevalecer minha vontade. Veja para onde me trouxe minha vontade de controlar tudo, de mandar em tudo. Juan, idiota, por que saiu correndo dessa maneira, se suicidando? Isso era culpa sua, eu não tinha nada a ver com isso. Culpa sua. Sua.
Quando não consegui mais, comi uma das caixas de marmelo inteira e bebi a lata que sobrou, escondendo todos os restos, inclusive uma das duas mantas que estavam comigo. Para que queria duas? quanto menos peso carregar, melhor. Ademais, me davam muito calor e quando carregava a mochila tinha a impressão de que estavam assando minhas costas, levando a camiseta permanentemente grudada ao corpo pelo suor, o que produzia uma sensação incômoda. Também havia começado a ter uma sensação constante de enjoo, possivelmente porque estava desidratado. Não me estranhava, os refrescos matavam a sede no momento mas não ofereciam muita hidratação. O efeito ioiô, como chamava um colega do colégio, dizia ele, por causa do açúcar.
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