— Também eu os vi antes, quando era ainda rapaz. Vieram numa batida até Gont. E chegaram à minha aldeia, para a saquear. Mas foram afugentados. Houve depois uma batalha na Foz-do-Ar, na costa. Foram mortos muitos homens, centenas, dizem. Bem, talvez agora, que o anel está unido e a Runa Perdida foi refeita, não haja mais dessas batidas e mortandades entre o Império Karguiano e as Terras Interiores.
— Seria uma loucura se tais coisas continuassem — comentou Tenar. — Que iria o Rei-Deus fazer com tantos escravos?
O companheiro pareceu ponderar aquelas palavras durante algum tempo. Depois perguntou:
— Queres tu dizer, se o território dos Kargs derrotasse o Arquipélago?
Ela assentiu com um aceno de cabeça.
— Não me parece que isso tivesse grandes possibilidades de acontecer.
— Mas repara como o Império é forte… Vê essa grande cidade, com as suas muralhas e todos os seus homens. Como poderiam as tuas terras defrontá-los, se fossem atacadas?
— Esta não é uma grande cidade — disse ele, cautelosa e docemente. — Também eu a teria julgado tremenda, ao acabar de deixar a minha montanha. Mas há muitas, muitas cidades em Terramar, entre as quais esta é apenas uma vila. E há muitas, muitas terras. Hás de vê-las, Tenar.
Sem responder, a rapariga continuou a andar na estrada, uma expressão obstinada no rosto.
— É maravilhoso vê-las, avistar as novas terras como que a erguerem-se do mar à medida que o nosso barco se aproxima delas. As quintas e as florestas, os mercados onde se vende tudo o que há no mundo.
Ela acenou a cabeça. Sabia que ele estava a tentar encorajá-la, mas ela deixara a alegria lá era cima nas montanhas, no valezinho iluminado pelo crepúsculo, percorrido pelo rio. Havia agora nela um temor que não cessava de aumentar. Tudo o que havia para a frente era desconhecido. Nada conhecia além do deserto e dos Túmulos. E isso de que servia? Conhecia todas as voltas de um labirinto em ruínas, sabia as danças a dançar perante um altar que tombara. E nada sabia de florestas, de cidades, dos corações dos homens.
Subitamente, perguntou:
— Ficarás lá comigo?
Não o olhou. Ele ia com o seu disfarce de ilusão, um camponês karguiano de pele branca, e não gostava de o ver assim. Mas a sua voz não mudara, era ainda a mesma que lhe falara na escuridão do Labirinto.
Gued levou algum tempo a responder.
— Tenar — disse, por fim —, eu vou onde sou enviado. Sigo um chamamento. E ainda nunca me deixou ficar por muito tempo em terra alguma. Estás a compreender? Faço o que tenho de fazer. Para onde vou, tenho de ir sozinho. Enquanto precisares de mim, ficarei contigo em Havnor. E se alguma vez voltares a precisar de mim, chama-me. Eu virei. Viria da minha própria sepultura se me chamasses, Tenar! Mas não posso ficar contigo.
A isto ela nada respondeu. Pouco depois, Gued acrescentou:
— Não vais precisar lá de mim. Vais ser feliz.
Ela aquiesceu com um movimento de cabeça, aceitando, silenciosa.
E, lado a lado, continuaram o seu caminho em direção ao mar.
Gued ocultara o seu barco numa gruta, num dos lados de um grande promontório rochoso, chamado Cabo da Nuvem pelos aldeãos da vizinhança, um dos quais lhes deu uma tigela de caldeirada para a ceia. Fizeram caminho pela falésia até à praia, sob a última luz de um dia cinzento. A gruta era uma fenda estreita que se aprofundava na rocha cerca de dez metros. O chão arenoso estava úmido porque ficava logo acima do nível da maré alta. A abertura era visível do mar e Gued disse que não podiam fazer fogo, não fosse algum pescador noturno, navegando no seu barquinho ao longo da costa, vê-lo e ficar curioso. Por isso estenderam-se miseramente na areia, que tão macia era ao toque dos dedos, mas dura como rocha para o corpo cansado. E Tenar escutava o oceano, poucos metros abaixo da boca da gruta, rebentando e retrocedendo e reboando nos rochedos, e ainda o seu trovejar praia abaixo, para leste, durante milhas e milhas. E uma vez e outra e outra ainda fazia os mesmos sons que, no entanto, não eram bem os mesmos. Nunca repousava. Em todas as costas de todas as terras e por todo o mundo, alteava-se naquelas ondas inquietas, e nunca cessava, e nunca se aquietava. O deserto, as montanhas, esses permaneciam quietos. Não lançavam um brado eterno com voz alterosa e cava. O mar falava incessantemente, mas a sua língua era-lhe alheia. Ela não compreendia.
Ao iluminar da primeira luz acinzentada, quando a maré estava baixa, acordou de um sono inquieto e viu o feiticeiro sair da gruta. Observou-o enquanto ele caminhava, de pés nus, um cinto a cingir-lhe o manto, sobre as rochas lá em baixo, cobertas do que parecia cabelos pretos, à procura de qualquer coisa. Voltou depois, escurecendo a gruta ao entrar, e, estendendo-lhe uma mão-cheia de umas coisas molhadas e hediondas, semelhantes a pedras púrpuras com lábios laranja, disse:
— Toma.
— Que é isso?
— Mexilhões, das rochas. E estas duas são ostras, ainda melhores. Repara… assim.
Com a pequena adaga da argola das chaves que a rapariga lhe entregara nas montanhas, abriu uma concha e comeu o mexilhão, com a água do mar a servir de molho.
— Nem sequer o cozinhas? Comeste isso vivo!
E não quis voltar a olhá-lo enquanto ele, envergonhado mas inabalável, continuou a abrir e a comer os moluscos, um por um.
Depois de acabar, voltou para dentro da gruta e foi até ao barco, que tinha a proa virada para fora e estava montado sobre vários troncos trazidos pelo mar, a defendê-lo do contato com a areia. Tenar olhara para o barco na noite anterior, desconfiada e sem o entender. Era muito maior do que pensara que os barcos fossem, três vezes a sua própria altura em comprimento. Estava cheio de objetos de que ela desconhecia o uso e parecia perigoso. A cada lado do nariz (que era como ela chamava à proa) tinha um olho pintado e, no seu sono inquieto, sentira constantemente que o barco a fitava.
Gued rebuscou por instantes entre o que havia lá dentro e regressou com qualquer coisa. Um bocado de pão duro, bem embrulhado para se manter seco. E ofereceu-lhe uma grande fatia.
— Não tenho fome.
Ele olhou-lhe o rosto taciturno.
Depois, voltou a embrulhar o pão como antes, pô-lo de lado e sentou-se à entrada da gruta.
— Faltam umas duas horas para a maré voltar a subir — disse — e então podemos partir. Tiveste uma noite pouco sossegada. Porque é que não dormes agora?
— Não tenho sono.
Ele não deu resposta. Deixou-se simplesmente ficar, de lado para ela e de pernas cruzadas, sob o arco escuro das rochas. O altear e mover-se do mar, com o seu brilho, ficava por detrás dele, tal como o via do fundo da gruta. Ele não se movia. Permanecia tão imóvel como as próprias rochas. A quietude libertava-se dele e espalhava-se, como os círculos formados por uma pedra lançada à água. O silêncio tornou-se, não a ausência da fala, mas uma coisa em si própria, como o silêncio do deserto.
Passado muito tempo, Tenar ergueu-se e veio até à entrada da gruta. Ele não se moveu. Desceu os olhos para o seu rosto. Era como se tivesse sido fundido em cobre — rígido, os olhos escuros não completamente cerrados, mas olhando para baixo, a boca serena.
Ele estava tão para além de Tenar como o oceano.
Onde estava ele agora, em que direção o espírito caminharia? Nunca poderia segui-lo.
Ele obrigara-a a segui-lo. Chamara-a pelo nome e ela viera rastejando à sua mão, tal como o pequeno coelho do deserto viera do escuro até ele. E agora que tinha o anel, agora que os Túmulos estavam em ruínas e a sua sacerdotisa renegada para sempre, agora não precisava dela e partia para onde não conseguia segui-lo. Não queria ficar com ela. Iludira-a e deixá-la-ia desolada e só.
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