— É, mas… — começou o tesoureiro, em desalento.
— Afinal de contas, você não faria uma falsificação, faria?
— Não, hum, assim…
— É só um chapéu. É o que quer que as pessoas imaginem. Vêem o arqui-reitor usando, acham que é o original. De certo modo é. As coisas se definem pelo que provocam. E as pessoas também, evidentemente. Essa é a base fundamental da magia dos magos.
Carding fez uma pausa teatral e botou a chapeleira nos braços abertos de Lingote.
— Cogitum fungu chappili, poderíamos dizer.
Lingote havia estudado línguas antigas e fez o melhor que pôde para decifrar a frase:
— Penso, logo sou um chapéu?, — arriscou.
— O quê? — perguntou Carding, ao descerem a escada que levava à nova encarnação do salão principal.
— Achei que eu fosse um chapéu louco? — insistiu Lingote.
— Fique quieto, está bem?
A névoa ainda pairava sobre a cidade, e suas faixas de ouro e prata viravam sangue à luz do sol poente, que se filtrava pelas janelas do salão.
Coin estava sentado num banco, com a vara sobre os joelhos. Ocorreu a Lingote que jamais vira o garoto sem ela, o que era estranho. A maioria dos magos deixava os bastões debaixo da cama ou os pendurava na lareira.
Ele não gostava daquela vara. Era preta. Mas não porque fosse daquela cor, antes porque parecia um vão ambulante para um quadro de dimensões terrível. Ela não tinha olhos, mas parecia fitar Lingote como se soubesse seus pensamentos mais íntimos, o que, naquele momento, era mais do que ele próprio sabia.
Sua pele formigou quando os dois magos cruzaram a sala, e foi possível sentir o sopro de magia em estado bruto subir do vulto ali sentado.
Algumas dezenas de magos sêniores encontravam-se amontoados em torno do banco, olhando embasbacados para o chão.
Lingote esticou o pescoço e viu… o mundo.
Flutuava numa poça de noite escura, estendida no próprio chão, e, com terrível certeza, Lingote se deu conta de que era de fato o mundo, não alguma imagem ou mera projeção. Havia traços de nuvem e tudo o mais. Lá estavam os desertos gelados de Centrolândia, o Continente Contrapeso, o Mar Círculo, a queda-dágua da Beira, tudo minúsculo e em tom pastel, todavia, real… Alguém estava falando com ele.
— Hum? — perguntou, e a súbita queda metafórica de temperatura o trouxe de volta à realidade.
Apavorado, percebeu que Coin havia lhe dirigido um comentário.
— Sim? — emendou. — É só que o mundo… tão bonito…
— Lingote é um esteta — notou Coin, e ouviu-se o riso breve de um ou dois magos que sabiam o significado da palavra. — Mas, quanto ao mundo, pode melhorar. Eu havia dito, Lingote, que por onde andamos vemos maldade, ganância e barbárie, o que nos mostra que o mundo, na verdade, é mal governado, não é?
Lingote sentiu duas dezenas de pares de olhos voltarem-se para ele.
— Hum — respondeu. — Bem, não podemos mudar a natureza humana.
Houve silêncio.
— Podemos? — alarmou-se.
— Isso ainda vamos ver — interveio Carding. — Mas, se alterarmos o mundo, a natureza humana também vai mudar. Não é, irmãos?
— Temos a cidade — disse um dos magos. — Eu mesmo criei um castelo…
— Governamos a cidade, mas quem governa o mundo? — insistiu Carding. — Deve haver mil reis, caciques e imperadores mixurucas por aí.
— Nenhum dos quais sabe ler sem mexer os lábios — salientou outro mago.
— O Patrício sabia ler — lembrou Lingote.
— Não se lhe cortássemos o indicador — objetou Carding. — Aliás, o que aconteceu com o lagarto?… Não importa. A questão é que o mundo certamente deveria ser governado por homens de sabedoria. Ele precisa ser conduzido. Passamos séculos brigando entre nós, mas, juntos, quem sabe o que podemos fazer?
— Hoje a cidade, amanhã o mundo — gritou alguém, lá de trás.
Carding assentiu.
— Amanhã o mundo e… — ele calculou rápido — … Sexta-feira o universo!
Isso deixa o fim de semana livre, pensou Lingote. Lembrou-se, então, da chapeleira em suas mãos e estendeu-a para Coin. Mas Carding avançou para a frente dele, tomou a caixa num movimento delicado e ofereceu-a ao garoto, com um floreio.
— O chapéu de arqui-reitor — anunciou. — Legitimamente seu, todos nós achamos.
Coin pegou-a. Pela primeira vez, Lingote viu a incerteza cruzar-lhe o rosto.
— Não existe uma espécie de cerimônia formal? — perguntou o garoto.
Carding tossiu.
— Eu… hã, não — respondeu. — Acho que não. — Ele olhou para os outros magos sêniores, que sacudiram a cabeça. — Não. Nunca existiu. Afora o banquete, é claro. Hã… veja, não é uma coroação. O arqui-reitor, sabe, ele rege à fraternidade dos magos… — a voz de Carding, aos poucos, minguava à luz daquele olhar dourado — … é o… primeiro… entre… iguais…
Ele recuou quando a vara se ergueu assustadoramente, até apontar em sua direção. Mais uma vez, Coin parecia ouvir uma voz interior.
— Não — disse, afinal, e, quando falou em seguida, a voz apresentava aquela textura grave e ressonante que, se não somos magos, conseguimos apenas com muitos equipamentos caros de áudio. — Vamos fazer uma cerimônia. Tem de haver cerimônia, as pessoas precisam entender que os magos estão dominando. Mas não será aqui. Vou escolher um lugar. E todos os magos que já atravessaram esse portão vão comparecer, entendido?
— Alguns moram muito longe — objetou Carding, com cautela. — Vão levar algum tempo para viajar. Quando você estava pensando em…
— Eles são magos! — gritou Coin. — Podem estar aqui num piscar de olhos! Já dei a eles o poder! Além disso — a voz voltou ao tom normal —, a Universidade acabou. Nunca foi a verdadeira morada da magia, apenas sua prisão. Vou construir outro lugar para nós.
Ele tirou o chapéu da caixa e sorriu. Lingote e Carding prenderam a respiração.
— Mas…
Eles correram os olhos à volta. Hakardly, o professor da doutrina, havia começado a falar e, agora, limitava-se a abrir e fechar a boca. Coin virou-se para ele, uma sobrancelha erguida.
— Você não pretende fechar a Universidade… — disse o velho mago, com a voz trêmula.
— Ela já não é necessária — justificou Coin. — É um lugar de poeira e livros velhos. Faz parte do passado. Não é mesmo… irmãos?
Ouviu-se um coro de murmúrios incertos. Os magos achavam difícil imaginar a vida sem as velhas paredes da UI. Embora, pensando bem, houvesse de fato muita poeira, e os livros estivessem bem velhos…
— Afinal… Irmãos… algum de vocês esteve na biblioteca nesses últimos dias? A magia, agora, encontra-se dentro de vocês, e não aprisionada em capas duras. Não é maravilhoso? Existe alguém aqui que não tenha feito mais mágica, mágica de verdade, nas últimas 24 horas do que em toda a sua vida? Existe alguém aqui que, no fundo do coração, não concorde comigo?
Lingote estremeceu. No fundo de seu coração, um novo Lingote havia despertado e lutava para se fazer ouvir. Era um Lingote que ansiava por aqueles dias tranqüilos de apenas algumas horas antes, quando a magia se mostrava suave, vagava pela Universidade de chinelos velhos, sempre tinha tempo para um xerez, não era como uma espada quente no cérebro e, sobretudo, não matava ninguém.
Quando Lingote sentiu as cordas vocais ressoarem e, contra todos os seus esforços, prepararem-se para discordar, o pânico tomou conta dele. O bastão tentava localizá-lo. Dava para sentir a busca. A vara faria com que ele desaparecesse, exatamente como ao coitado do Billias. Lingote travou a boca, mas sentiu que não adiantaria. O peito se inchou. A boca estalou. Deslocando-se sem jeito, Carding lhe pisou o pé. Lingote soltou um grito.
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