— ACHEI QUE ERA HORA DE MUDAR.
— Toca algum instrumento musical?
— NÃO.
— É bom em carpintaria?
— NÃO SEI, NUNCA TENTEI.
Morte olhou os próprios pés. Estava começando a ficar profundamente constrangido.
Keeble mexeu os papéis sobre a mesa e suspirou.
— SEI ATRAVESSAR PAREDES — aventurou-se Morte, ciente de que a conversa chegara a um impasse.
Keeble levantou a cabeça.
— Gostaria de ver isso — animou-se. — Pode ser uma qualificação.
— CERTO.
Morte afastou a cadeira e avançou confiante para a parede mais próxima. — Ai! Apreensivo, Keeble observava.
— Pode ir — disse.
— HÃ. ESSA PAREDE É NORMAL, NÃO É?
— Acho que é. Não sou nenhum especialista.
— ESTÁ ME OFERECENDO ALGUMA RESISTÊNCIA.
— Parece que sim.
— COMO SE CHAMA A SENSAÇÃO DE A GENTE FICAR MUITO PEQUENO E COM CALOR?
Keeble girou o lápis na mão.
— Pigmeu?
— COMEÇA COM C.
— Constrangido?
— ISSO — disse Morte. — QUER DIZER, ISSO.
— Parece que o senhor não tem nenhum dom ou talento — analisou o jovem. — Já pensou em lecionar?
O rosto de Morte era uma máscara de horror. Bem, sempre havia sido uma máscara de horror, mas dessa vez ele quis que fosse.
— Sabe? — começou Keeble, largando a caneta e juntando as mãos sobre a mesa. — É muito raro eu ter de achar emprego para uma... como é mesmo?
— PERSONIFICAÇÃO ANTROPOMÓRFICA.
— Ah, sim. O que é isso, exatamente?
Morte se cansou.
— ISSO — respondeu.
Por um instante, apenas por um instante, o senhor Keeble viu-o com clareza. O rosto ficou quase tão pálido quanto o do próprio Morte. As mãos se agitaram em convulsão. O coração disparou. Morte observou-o com algum interesse, então tirou uma ampulheta das profundezas do manto, suspendeu-a até a luz e examinou-a.
— CALMA — disse. — VOCÊ AINDA TEM UNS BONS ANOS PELA FRENTE.
— Mmmmmmm...
— SE QUISER, POSSO LHE DIZER QUANTOS.
Esforçando-se para respirar, Keeble conseguiu sacudir a cabeça.
— ENTÃO QUER UM COPO D'ÁGUA?
— Nnn... Nnn.
A campainha da agência soou. Keeble revirou os olhos. Morte decidiu que devia algo ao homem. O sujeito não deveria perder a freguesia — que sem dúvida era algo que os seres humanos estimavam muito.
Atravessou a cortina de contas e entrou na parte externa da agência, onde uma mulher baixa e gorda, mais parecida com um pão de queijo, batia no balcão com um bacalhau.
— É sobre o emprego de cozinheira na universidade — avisou ela. — Você disse que era um cargo maravilhoso, e aquilo é um inferno, com as armações dos alunos. Eu quero, exijo que você... não estou...
A voz se perdeu.
— ... aqui — disse, mas era óbvio que o ânimo se fora. — Você não é o Keeble, é?
Morte a encarou. Jamais tivera a experiência de pegar um cliente insatisfeito pela frente. Estava perplexo. Por fim, não agüentou.
— FORA, SUA BRUXA PRETA DA MEIA-NOITE — gritou ele. Os olhinhos da cozinheira se apertaram.
— Quem você está chamando de bucha da meia-noite? — perguntou, acusadoramente, e bateu outra vez com o peixe no balcão. — Olhe isso aqui — pediu. — Ontem à noite era meu aquecedor, hoje de manhã é um bacalhau.
— QUE TODOS OS DEMÔNIOS DO INFERNO LHE DILACEREM O ESPÍRITO SE VOCÊ NÃO SAIR DA AGÊNCIA NESTE INSTANTE — Arriscou Morte.
— Não sei nada disso, mas e quanto ao meu aquecedor? Aquilo não é lugar para mulher de respeito. Eles tentaram...
— SE VOCÊ FIZER A BONDADE DE IR EMBORA — propôs Morte, em desespero —, POSSO LHE PAGAR.
— Quanto? — perguntou a cozinheira, com uma rapidez que teria deixado cobra para trás e dado susto em relâmpago.
Morte pegou o saco de dinheiro e depositou uma pilha de moedas escurecidas sobre o balcão. Ela as fitou, com extrema desconfiança.
— AGORA SAIA — exigiu Morte, e acrescentou: — ANTES QUE OS VENTOS SECOS DO INFINITO LHE QUEIMEM A CARCAÇA IMPRESTÁVEL.
— Meu marido vai ficar sabendo disso — ameaçou a cozinheira, sombriamente, ao deixar a loja.
Ocorreu a Morte que nenhuma ameaça dele jamais poderia ter sido tão medonha.
Ele voltou para dentro. Ainda afundado na cadeira, Keeble soltou uma espécie de gorgolejo sufocado.
— Então é verdade! — lamentou. — Achei que você fosse um pesadelo!
— POSSO ACABAR ME OFENDENDO — advertiu Morte.
— Você realmente traz a morte? — perguntou Keeble.
— TRAGO.
— Por que não me disse logo?
— EM GERAL, PREFEREM QUE EU NÃO DIGA.
Keeble remexeu nos papéis, rindo histericamente.
— Quer trabalhar em outra ocupação? — indagou. — Bicho papão? Mula-sem-cabeça? Boitatá?
— NÃO SEJA RIDÍCULO. EU SÓ... QUERIA MUDAR UM POUCO.
Keeble achou afinal o papel que vinha procurando. Soltou um riso alucinado e botou-o nas mãos do visitante. Morte leu.
— ISSO É EMPREGO? AS PESSOAS RECEBEM PARA FAZER ISSO?
— Recebem, recebem, vá vê-lo. Você tem o perfil ideal. Só não diga a ele que eu o mandei.
Pituco avançava em galopes vigorosos pela noite. Agora Mortimer descobria que a espada ia além de onde havia imaginado, que alcançava as próprias estrelas, então agitou-a no espaço até o coração de uma estrela anã, que, com satisfação, virou nova. Ele se endireitou na sela e meneou a lâmina, rindo ao ver o fio azul atravessar o céu, deixando um rastro de escuridão e brasas.
Que não parou. Ele tentou conter a espada a cortar o horizonte, derrubando montanhas, secando oceanos, transformando florestas verdes em podridão e cinzas. Ao correr os olhos à volta, em desespero, ouviu vozes e o breve grito de amigos e parentes. Tempestades de areia se erguiam da terra em ruína, enquanto ele tentava soltar a arma, mas a espada lhe ardia a mão, arrastando-o numa dança que só acabaria quando não restasse mais nada.
Essa hora chegou, e Mortimer ficou sozinho, à exceção de Morte, que disse:
— Bom trabalho, garoto.
E Mortimer respondeu:
— MORT.
— Mort! Mort! Acorde!
Mortimer voltou a si lentamente, como um cadáver emergindo no lago. Resistiu um pouco, agarrando-se ao travesseiro e aos horrores do sono, mas alguém estava lhe puxando a orelha.
— Mnmph? — disse.
— Mort!
— Uzzz.
— Mort, é papai!
Desorientado, ele abriu os olhos e fitou o rosto de Ysabell. Então os acontecimentos do dia anterior atingiram-no como um saco de areia molhada.
Ele desceu da cama, ainda enredado nos restos do sonho.
— Tá, tudo bem — disse. — Vou vê-lo agora mesmo.
— Ele não está aqui! Albert já está maluco!
Ysabell se encontrava ao lado da carna, apertando um lenço entre as mãos.
— Mort, acha que aconteceu alguma coisa?
Ele a encarou, confuso.
— Não seja idiota — irritou-se. — Ele é o Morte.
Coçou a pele. Estava quente e seca.
— Mas nunca ficou tanto tempo assim fora! Nem quando teve peste em Pseudópolis! Quer dizer, de manhã ele precisa estar aqui para escrever nos livros, decifrar os nós e...
Mortimer agarrou os braços dela.
— Tudo bem, tudo bem — disse, da forma mais apaziguadora possível. — Tenho certeza de que está tudo certo. Fique calma, que vou resolver... Por que está de olhos fechados?
— Mort, por favor vista suas roupas — exigiu Ysabell, num sussurro constrangido.
Mort olhou para baixo.
— Desculpe — pediu. — Não percebi... Quem me botou na cama?
— Eu — respondeu ela. — Mas fiquei olhando para o outro lado. Mortimer enfiou a calça e a camisa e correu para o gabinete de Morte, com Ysabell em seu encalço. Albert já estava lá, saltando de um pé para o outro, como um pato na chapa. Quando Mortimer chegou, a fisionomia do homem quase poderia ter sido de gratidão.
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