Enquanto pensava nas mulheres, Grahame Coats lembrou-se de que ainda não as havia alimentado. Ele devia lhes dar algo para comer. E um balde. Elas precisariam de um balde, provavelmente, após 24 horas. Ninguém poderia dizer que ele era um animal sem coração.
Grahame Coats havia comprado uma arma em Williamstown na semana anterior. Era fácil comprar armas em Saint Andrews — era bem esse tipo de lugar. A maior parte das pessoas não se dava ao trabalho de comprar armas, e era bem esse tipo de lugar também. Grahame Coats retirou a arma da gaveta ao lado da cama e desceu para a cozinha. Pegou um balde de plástico do armário debaixo da pia e jogou dentro tomates, um inhame cru, um pedaço meio comido de queijo cheddar e uma caixa de suco de laranja. Satisfeito por haver pensado nisso, pôs ali também um rolo de papel higiênico.
Desceu para a adega. Nenhum barulho vinha do depósito de carne.
— Eu estou armado. E não tenho medo de usar a arma. Vou abrir a porta agora. Por favor, vão para o fundo da sala, virem-se e fiquem com as mãos na parede. Eu trouxe comida. Cooperem e vocês serão libertadas sem nenhum ferimento. Cooperem e ninguém se machucará. Ou seja, nada de gracinhas — disse ele, felicíssimo por ter usado uma enorme cadeia de clichês.
Acendeu as luzes e puxou os ferrolhos. As paredes da sala eram feitas de rocha e tijolo. Correntes enferrujadas pendiam dos ganchos no teto.
Elas estavam no fundo da sala. Rosie encarava a rocha, e sua mãe olhava por cima do ombro para Grahame Coats como um rato encurralado, furiosa e cheia de ódio.
Grahame Coats pôs o balde no chão. Ele não abaixou a arma.
— Comida legal, aqui. E, antes tarde do que nunca, um balde. Vejo que vocês têm usado ali o canto. Aqui tem papel higiênico também. Não digam que não faço nada por vocês.
— Você vai matar a gente, não vai? — perguntou Rosie.
— Não o enfrente, sua idiota — disse a mãe. — Então, dando uma espécie de sorriso, completou: — Obrigada pela comida.
— Claro que não vou matar vocês — respondeu Grahame Coats. Somente ao ouvir as palavras saindo de sua boca ele admitiu a si próprio que sim, claro, teria que matá-las. Que outra opção ele tinha? — Vocês não me disseram que o Fat Charlie tinha mandado vocês pra cá.
E Rosie disse:
— Nós viemos num cruzeiro. Nesta noite, deveríamos estar em Barbados, para comer peixe frito. O Fat Charlie está na Inglaterra. Não acho que ele saiba onde estamos. Eu não disse a ele.
— O que você diz não importa — respondeu Grahame Coats. — Eu tenho uma arma.
Ele fechou a porta e a trancou. Antes de se afastar, pôde ouvir a mãe de Rosie dizendo:
— O bicho! Por que você não perguntou sobre o bicho?
— Porque você só está imaginando, mãe, eu já disse. Não tem bicho nenhum aqui. Ele é louco, provavelmente concordaria com você. Deve ver tigres invisíveis o tempo todo.
Sentindo-se ofendido pelas palavras de Rosie, Grahame Coats apagou as luzes. Apanhou uma garrafa de vinho e subiu as escadas, batendo a porta atrás de si.
Na escuridão sob a casa, Rosie partiu o pedaço de queijo em quatro pedaços e comeu um tão devagar quanto pôde.
— O que ele disse sobre o Fat Charlie? — perguntou ela à mãe depois que o queijo se dissolvera em sua boca.
— Esse seu maldito Fat Charlie. Não quero saber nada a respeito dele. É por causa dele que estamos aqui.
— Não, nós estamos aqui porque esse Coats é totalmente pirado. Um maluco com uma arma. Não é culpa do Fat Charlie.
Rosie tentava não pensar em Fat Charlie, porque isso a fazia inevitavelmente pensar também em Spider...
— Voltou — começou a mãe. — O animal voltou. Eu ouvi. Consigo sentir o cheiro daqui.
-Tá, mãe.
Rosie ficou sentada no chão de concreto e pensou em Spider. Sentia falta dele. Quando Grahame Coats voltasse a si e as deixasse ir embora, tentaria achar Spider. Saberia se poderiam tentar de novo. Tinha consciência de que era apenas um devaneio tolo, mas era um bom sonho, e a confortava.
Rosie se perguntou se Grahame Coats iria matá-las no dia seguinte.
Separado daquele mundo por milímetros, Spider se encontrava amarrado a uma estaca, esperando pela fera. Era fim de tarde, e o sol descia atrás dele.
Spider empurrava algo com seu nariz e lábios: terra seca que sua saliva e sangue haviam umedecido e que agora tinha a forma de uma bola de lama, uma esfera avermelhada de argila embaixo da qual ele tentava enfiar o nariz. Lançou o rosto para o alto tentando levantar a bola, mas nada aconteceu, da mesma forma como não havia acontecido em suas outras incontáveis tentativas. Vinte? Cem? Spider não contava, apenas continuava tentando, empurrando o rosto na poeira, enfiando o nariz debaixo da bola de barro, lançando o rosto para a frente e para cima...
Nada aconteceu. Nada aconteceria. Era preciso usar outra tática.
Fechou os lábios ao redor da bola e aspirou ar pelo nariz tão forte quanto pôde. Soprou ar pela boca, e a bola voou de seus lábios como uma rolha de champanhe. Aterrissou a uns 40 centímetros de distância.
Agora Spider girava sua mão direita, amarrada pelo pulso com a corda atando-a à estaca. Ele puxou a mão e a girou. Seus dedos se esticaram na direção da bola de lama, sem sucesso.
Estava tão perto...
Spider tomou outro longo fôlego, mas se engasgou com a terra seca e começou a tossir. Tentou novamente, girando a cabeça para um lado, e encheu os pulmões. Rolou de lado e começou a soprar na direção da bola, expulsando o ar dos pulmões com o máximo de força que conseguia.
A bola de lama rolou — menos de três centímetros, mas era o bastante. Ele se esticou, e logo a tinha entre os dedos. Começou a amassar a superfície da bola, fazendo pequenas pontas. Oito delas. Repetiu o processo, dessa vez apertando a massinha um pouco mais forte. Uma das pontas caiu na poeira, mas as outras ficaram seguras. No final, Spider tinha nas mãos uma pequena bola de barro com sete pontas saindo da superfície, como uma representação do Sol feita por uma criança.
Ele olhou para a bola com orgulho: dadas as circunstâncias, sentiu tanto orgulho dela como uma criança se orgulharia de um trabalho escolar.
A palavra seria a parte mais difícil. Fazer uma aranha ou algo parecido a partir de sangue, cuspe e barro, aquilo era fácil. Até deuses menores da traquinagem, como Spider, sabiam fazer. Mas a parte final da Criação seria a mais difícil. Você precisa de uma palavra para dar vida a alguma coisa. Você precisa dar nome a ela. Spider abriu a boca.
— Hrrurrrurrr — disse com sua boca sem língua. Nada aconteceu.
Tentou novamente.
— Hrrurrurr!
E a massinha lá parada, como um torrão inerte, em sua mão. O rosto de Spider caiu na poeira novamente. Ele estava exausto. Cada movimento que fazia rachava as cascas de suas feridas, que supuravam, queimavam e — o pior — coçavam. “Pense!”, disse a si próprio. Tinha que haver um modo de fazer isso... De falar sem língua.
Ainda havia uma camada de barro sobre os lábios de Spider. Ele os sugou e umedeceu tão bem quanto pôde. Depois suspirou profundamente e deixou o ar passar por seus lábios, concentrando-se bastante e dizendo a palavra com tanta segurança que nem mesmo o universo poderia discordar dele. Spider descreveu a coisa que estava em sua mão e lhe deu seu próprio nome, que era a melhor magia que conhecia:
— Hhssspphhhrrriiivver.
Em sua mão, onde havia um torrão de barro, agora estava uma gorda aranha cor de argila vermelha, com sete patas delgadas.
“Me ajude”, pensou Spider. “Consiga ajuda.”
A aranha o encarou com olhos que brilhavam à luz do sol, pulou para o chão e caminhou meio torta até a grama, com um traquejo trêmulo e irregular.
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