Os caixotes estavam cheios de livros, instrumentos científicos, objetos variados, todo um museu de astronomia. Só os deuses sabiam quanto pesavam, mas alguma força sobrenatural se apossara de Theremon naquele momento de crise e ele conseguiu deslocá-los, como se fossem travesseiros, com a ajuda, não muito eficiente, de Sheerin.
Os pequenos telescópios e outros aparelhos chocalharam, enquanto ele transportava os caixotes. Ouviu um barulho de vidro quebrado. Beenay vai me matar, pensou Theremon. Ele adora essas quinquilharias.
Mas não estava na hora de ser delicado. Amontoou os caixotes contra a porta e, em poucos minutos, havia erguido uma barricada que, com sorte, seria capaz de conter os invasores se eles conseguissem arrombar o portão.
Podiam ouvir, com se viesse de muito longe, o som de punhos cerrados batendo na porta. Gritos… gemidos… Era como um terrível pesadelo.
A multidão partira de Saro com apenas duas coisas na mente: a vontade de destruir o Observatório e assim conseguir a absolvição prometida pelos Apóstolos, e um medo irracional que quase os deixava paralisados. Não houvera tempo para pensar em veículos, em armas, em líderes, nem mesmo em organização. Tinham se dirigido para o Observatório a pé e tentavam invadi-lo com mãos nuas.
E agora que estavam ali, o último lampejo de Dovim, a última gota de fogo escarlate tremeluziu por um instante sobre uma humanidade, à qual restava apenas um medo rígido e universal.
— Vamos subir — murmurou Theremon.
A sala do primeiro andar agora estava vazia. Tinham todos ido para o segundo andar, onde ficavam os telescópios. Quando entrou na cúpula, Theremon ficou surpreso com a calma que parecia haver se apossado de todos. Era como um quadro vivo. Yimot estava sentado no pequeno assento reclinável, operando o gigantesco solarscópio como se aquela fosse uma observação astronômica de rotina. Os outros se aglomeravam em torno dos telescópios menores, e Beenay dava instruções com voz tensa e desigual.
— Prestem atenção, todos vocês. Temos que fotografar Dovim um segundo antes da totalidade e mudar o filme. Ei, você… você… um para cada câmera. É melhor duplicar o trabalho para termos certeza de que não vamos perder nada. Vocês sabem quais são os tempos de exposição.
Os assistentes murmuraram que sim. Beenay passou a mão pelos olhos.
— As tochas ainda estão acesas? Claro que sim. Posso vê-las! — Apoiou-se nas costas de uma cadeira. – Lembrem-se, não façam tentativas exóticas. Não percam tempo tentando pegar duas estrelas de uma vez. Uma é suficiente. E… e se sentirem que estão perdendo o juízo, afastem-se da câmera. Da porta, Sheerin sussurrou para Theremon:
— Leve-me a Athor. Não consigo vê-lo.
O repórter não respondeu logo. As formas vagas dos astrônomos oscilavam e confundiam-se, e as tochas haviam se transformado em manchas amarelas. A cúpula estava fria como a morte. Theremon sentiu a mão de Siferra tocar a sua por um momento, apenas por um momento, mas não viu a arqueóloga.
— Está escuro — gemeu. Sheerin estendeu a mão.
— Athor. — Cambaleou para a frente. — Athor! Theremon se aproximou e segurou-o pelo braço.
— Espere. Vou levar você.
Atravessou o aposento com esforço, fechando os olhos para se proteger da Escuridão e proteger a mente do caos esmagador que crescia dentro dele. Ninguém lhes deu atenção. Sheerin apoiou-se na parede.
— Athor!
— É você, Sheerin?
— Sou eu, sou eu. Athor?
— Que é, Sheerin? — Era a voz de Athor, sem dúvida.
— Eu só queria lhe dizer… para não se preocupar com a multidão… eles não vão conseguir arrombar a porta…
— Está bem. Obrigado — murmurou Athor.
A voz de Athor, pensou Theremon, soava como se ele estivesse a quilômetros de distância. A anos-luz de distância.
De repente, outro vulto estava no meio deles, agitando os braços. Theremon achou que podia ser Yimot ou mesmo Beenay, mas depois sentiu o tecido grosseiro de uma veste de Apóstolo e compreendeu que só podia ser Folimun.
— As Estrelas! — gritou Folimun. — As Estrelas estão chegando! Saiam do meu caminho!
Ele está tentando chegar até onde está Beenay, pensou Theremon. Para destruir as câmeras sacrílegas.
— Cuidado! — gritou Theremon.
Mas Beenay continuava sentado em frente aos computadores que controlavam as câmeras. Theremon segurou a veste de Folimun e deu um puxão. De repente, sentiu alguém apertar-lhe o pescoço. Cambaleou. Não havia nada à sua frente além de sombras, o próprio chão debaixo dos seus pés parecia ter perdido substância.
O impacto de um joelho no abdome o fez dobrar-se de dor; quase caiu.
Após um momento de agonia, porém, suas forças voltaram. Segurou Folimun pelos ombros, sacudiu-o, deu-lhe uma gravata. Nesse momento, ouviu Beenay exclamar:
— Chegou a hora! Todos para suas câmeras! Theremon tomou consciência de várias coisas ao mesmo tempo. O mundo inteiro estava passando pela sua mente conturbada… e tudo era caos, tudo era medo.
Percebeu que o último raio de sol tinha ficado para trás. Ao mesmo tempo, ouviu um gemido sufocado de Folimun, um grito de espanto de Beenay, uma gargalhada histérica de Sheerin, que terminou abruptamente… e um súbito silêncio, um silêncio estranho e mortal do lado de fora.
Sentiu o corpo de Folimun relaxar. Examinou os olhos do Apóstolo e pôde ver que apenas a parte branca refletia a luz tênue das tochas. Os cantos dos lábios do Apóstolo se encheram de espuma e ele deixou escapar um rugido animal. Com a lenta fascinação do medo, levantou a cabeça para o negrume arrepiante do céu.
Lá fora, estavam as Estrelas!
Não uma ou duas dúzias, como imaginava Beenay. Havia milhares delas, brilhando com incrível nitidez, uma ao lado da outra, uma infinita parede de estrelas, formando um ofuscante escudo de espantosa luz que enchia todo o céu. Milhares de poderosos sóis tremeluziam no céu, em um esplendor que era mais assustadoramente frio em sua serena indiferença do que o vento cortante que castigava aquele mundo gélido e escuro.
Elas abalavam as raízes do seu ser. Martelavam o seu cérebro. Sua monstruosa luz gélida era como um milhão de gongos gigantescos sendo tocados ao mesmo tempo.
Meu Deus, pensou. Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Mas não podia desviar os olhos daquela visão diabólica. Ficou olhando pela abertura da cúpula, todos os músculos do corpo enrijecidos, contemplando, com uma mistura de fascínio e terror, aquela cortina cintilante que cobria o céu. Sentiu a mente encolher-se diante daquele espetáculo grandioso até ficar reduzida a um pequeno ponto gelado. Seu cérebro não era maior do que uma bola de gude, chocalhando na cabaça oca que era o seu crânio. Seus pulmões se recusavam a funcionar. Seu sangue corria em sentido oposto nas veias.
Afinal, conseguiu fechar os olhos. Ficou algum tempo ajoelhado, ofegante, lutando para recuperar o controle. Depois, Theremon se pôs de pé com esforço, a garganta contraída a ponto de impedir-lhe a respiração, todos os músculos do corpo agonizando em uma tensão de terror e um medo absoluto além da compreensão. Sabia vagamente que Siferra estava por perto, mas teve que lutar para lembrar quem ela era. Teve que se esforçar para se lembrar quem ele era. Do andar térreo, veio um temível ruído de batidas ininterruptas na porta, como se uma selvagem fera estranha, de mil cabeças, estivesse lutando para entrar…
Não tinha importância.
Nada mais tinha importância.
Estava ficando louco e sabia disso. Em algum lugar do seu íntimo, o que lhe restava de sanidade estava protestando, lutando para não ceder à avalanche irresistível de puro pavor. Era horrível enlouquecer e ter consciência disto, saber que em poucos instantes estaria ali fisicamente, mas toda a essência do seu ser estaria morta, afogada pela escuridão. Porque aquilo era a Escuridão. A Escuridão, o Frio e o Medo. As paredes luminosas do universo tinham sido estilhaçadas e seus horríveis fragmentos negros estavam caindo para esmagá-lo e obliterá-lo.
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