— Eles desapareceram.
— Obrigado, já sabia disso. É por isso que tenho falado pouco com Alvin sobre seus antecessores. No estado em que ele se encontra hoje, isso não o ajudaria muito. Posso contar com sua cooperação?
— Por enquanto pode. Quero estudá-lo eu próprio. Os mistérios sempre me intrigaram, e eles são raríssimos em Diaspar. Além disso, acho que o Destino pode estar arquitetando uma Bufonaria perto da qual todos os meus esforços parecerão modestíssimos. Nesse caso, quero ficar certo de que estarei presente em seu clímax.
— Você gosta demais de falar por enigmas — queixou-se Jeserac. — O que está prevendo, exatamente?
— Duvido que meus palpites possam ser melhores do que os seus. Mas acho que nem eu, nem você, nem ninguém em Diaspar será capaz de deter Alvin quando decidir o que deseja fazer. Temos alguns séculos bem interessantes à nossa frente.
Jeserac permaneceu imóvel por muito tempo, esquecido de suas matemáticas, depois da imagem de Khedron ter desaparecido de sua vista. Uma sensação de mau agouro, que nunca havia sentido anteriormente, pairava sobre ele. Por um rápido momento imaginou se não seria conveniente solicitar uma audiência ao Conselho… mas não estaria fazendo um espalhafato ridículo por causa de nada? Talvez tudo aquilo não passasse de um complicado e obscuro gracejo de Khedron, ainda que ele não conseguisse imaginar por que teria sido escolhido como alvo.
Pesou o problema cuidadosamente, examinando-o por todos os ângulos. E depois de pouco mais de uma hora, tomou uma decisão característica.
Esperaria para ver.
Alvin não perdeu tempo para aprender tudo quanto pudesse acerca de Khedron. Como de costume, Jeserac foi sua principal fonte de informações. O velho tutor fez um relato pormenorizado de seu encontro com o Bufão, acrescentando o pouco que sabia a respeito do modo de vida do personagem. Por incrível que pudesse parecer, a verdade era que Khedron era um recluso: ninguém sabia onde morava e ignorava-se tudo quanto a seu estilo de vida. A última brincadeira que imaginara fora um tanto infantil, envolvendo a imobilização geral das vias móveis. Isso acontecera havia cinqüenta anos.
Um século antes pusera em liberdade um dragão particularmente revoltante, que vagueara pela cidade devorando os exemplares existentes do escultor mais popular da época. O próprio artista, com toda razão alarmado, quando a singular dieta da fera se tornara óbvia, escondera-se e só aparecera depois que o monstro sumira tão misteriosamente como surgira.
Os relatos deixavam claro uma coisa: Khedron devia ter profundo conhecimento das máquinas e dos poderes que governavam a cidade, forçando-os a obedecerem a seus desejos de uma maneira de que ninguém era capaz. Presumivelmente, havia um controle supremo que impedisse que um Bufão superambicioso causasse prejuízo à complexa estrutura de Diaspar.
Alvin tomou nota dessas informações, mas não esboçou nenhuma iniciativa para entrar em contato com Khedron. Embora tivesse muitas perguntas para fazer ao Bufão, sua obstinada tendência à independência — talvez a mais verdadeiramente única de todas suas qualidades — levava-o a descobrir tudo que pudesse mediante seus próprios esforços. Havia-se empenhado num projeto que sem dúvida exigiria anos de atenção, mas enquanto se sentisse avançar em direção à meta, estaria feliz.
Como um viajante em terra estranha, começou a exploração sistemática de Diaspar. Passava suas semanas e seus dias vasculhando as torres solitárias na periferia da cidade, na esperança de descobrir em algum lugar um caminho para o mundo exterior. Durante essa busca encontrou uma dúzia de grandes saídas de ar, bastante elevadas, que davam para o deserto, mas todas barradas. E mesmo que as barras não existissem, a simples queda de mil e quinhentos metros era obstáculo suficiente.
Não descobriu outras saídas, embora explorasse mil corredores e dez mil câmaras vazias. Todos esses edifícios se encontravam naquela condição perfeita e impecável que os habitantes de Diaspar consideravam como parte da ordem natural das coisas. Às vezes Alvin encontrava um robô errante, obviamente num giro de inspeção, e não perdia oportunidade de interrogá-lo. Mas suas tentativas eram vãs, porque as máquinas que encontrava não tinham sido preparadas para responder à fala ou aos pensamentos humanos. Embora conscientes da presença de Alvin, pois abriam caminho polidamente para deixá-lo passar, recusavam-se à travar conversa.
Havia ocasiões em que Alvin não via outro ser humano durante dias. Quando sentia fome, entrava num aposento de moradia e ordenava uma refeição. Máquinas miraculosas, a cuja existência ele raramente havia dedicado um pensamento, acordavam para a vida após eras sem fim de sono. Os padrões que tinham estocados em suas memórias estremeciam à beira da realidade, organizando e dirigindo a matéria que controlavam. E assim, uma refeição preparada por um mestre-cuca cem milhões de anos antes ganhava novamente existência para deliciar o paladar ou apenas para satisfazer o apetite.
A solidão desse mundo deserto — a casca vazia que cercava o coração vivo da cidade — não deprimia Alvin. Estava habituado à solidão, mesmo quando na companhia de pessoas que considerava amigas. Essa ardente exploração, que absorvia toda sua energia e sua atenção, fez com que ele se esquecesse por algum tempo do mistério de sua herança e a anomalia que o apartava de seus camaradas.
Explorara menos de um milésimo de periferia da cidade quando chegou à conclusão de que estava perdendo tempo. Essa decisão não foi fruto de impaciência, mas de profundo bom senso. Se necessário, Alvin estaria disposto a voltar atrás e terminar a tarefa, mesmo que nela tivesse de empregar o resto da vida. No entanto, já vira o suficiente para constatar que, se existia um caminho para fora de Diaspar, não seria encontrado dessa forma. Poderia gastar séculos em buscas infrutíferas, a menos que pedisse a ajuda de homens mais sábios.
Jeserac lhe dissera taxativamente que não conhecia qualquer caminho de saída de Diaspar, na verdade, duvidava que existisse. As máquinas de informação, quando interrogadas por Alvin, pesquisavam em vão suas memórias quase infinitas. Podiam contar-lhe detalhadamente a história da cidade desde o começo das eras remotas até a barreira além da qual as Eras do Alvorecer jaziam para sempre ocultas. Mas não eram capazes de responder à pergunta simples de Alvin — ou então um poder superior as havia impedido de fazê-lo.
Alvin teria de ver Khedron outra vez.
— Você demorou — disse Khedron —, mas eu sabia que viria, mais cedo ou mais tarde.
Essa segurança aborreceu Alvin, não lhe era agradável pensar que sua conduta pudesse ser prevista com tanto acerto. Imaginou se o Bufão teria acompanhado suas buscas infrutíferas e se saberia exatamente o que ele andara fazendo.
— Estou tentando achar uma saída para fora da cidade — disse Alvin abruptamente. — Deve haver uma saída, e acho que você poderia ajudar-me a encontrá-la.
Khedron ficou em silêncio por um momento. Ainda havia tempo, se assim o desejasse, de virar as costas ao caminho que a partir dali se estendia diante dele e que levava a um futuro além de todos seus poderes de profecia. Nenhuma outra pessoa teria hesitado, qualquer outro homem da cidade, mesmo dispondo de poder para tanto, jamais teria ousado perturbar os fantasmas de uma era morta há milhões de séculos. Talvez não houvesse perigo, talvez nada conseguisse alterar a perpétua imutabilidade de Diaspar. Mas se existisse o risco de algo estranho e novo invadir aquele mundo, ali estava a última oportunidade para repeli-lo.
Khedron sentia-se satisfeito com a ordem das coisas. Na verdade, podia agitar essa ordem de vez em quando… mas só um pouco. Era um crítico, não um revolucionário. No rio do tempo, que fluía placidamente, ele desejava apenas provocar algumas marolas, mas evitava desviar-lhe o curso. O desejo de aventura — com exceção das aventuras do espírito — fora eliminado dele, cuidadosa e completamente, como de todos os demais cidadãos de Diaspar.
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