— Foste para a Adaptação?
— Fui, mas só um dia. Parei. Não podia, como sabes…
— Pois sei. Escuta, Olaf… Aluguei aqui uma moradia. Pode não ser… Ouve, vem até cá!
Não respondeu logo. Quando o fez, havia hesitação na sua voz.
— Gostaria de ir. E, talvez vá, Hal… mas tu sabes o que eles nos disseram…
— Sei. Mas que nos podem fazer? De qualquer modo, que vão para o inferno. Vem.
— Para quê? Pensa, Hal. Podia ser…
— O quê?
— Pior.
— Como sabes que não me estou a divertir aqui à grande?
Ouvi a sua gargalhada breve, que mais parecia um suspiro. Ria tão baixinho!
— Então para que me queres aí?
Tive, de súbito, uma ideia:
— Escuta, Olaf. Isto aqui é uma espécie de estância de Verão. Uma moradia, uma piscina, jardins. O único problema… mas tu deves saber como as coisas são, a maneira como eles vivem, não é verdade?
— Tenho uma vaga ideia, sim.
O tom disse mais do que as palavras.
— Aí tens. Agora presta atenção. Vem para cá, mas primeiro arranja umas… luvas de boxe! Dois pares. Daremos uns toques. Verás, será formidável!
— Jesus, Hal! Onde irei eu arranjar luvas de boxe? Provavelmente não as fazem há anos.
— Manda-as fazer! Não me digas que é impossível fazer quatro estúpidas luvas. Montaremos um pequeno ringue… e esmurrar-nos-emos um ao outro. Nós dois podemos, Olaf! Presumo que ouviste falar de betrização?
— Hum… Hei-de dizer-te o que penso disso, mas não pelo telefone. Poderia haver alguém com ouvidos delicados.
— Vem, homem! Fazes o que eu disse?
Ficou silencioso durante um bocado.
— Não sei se é sensato, Hal.
— Está bem. Então diz-me, já agora, que planos tens. Se tiveres alguns, não ousarei, naturalmente, incomodar-te qom os meus caprichos.
— Não tenho nenhuns. E tu?
— Vim para aqui para descansar, para me instruir e ler, mas isto não são planos, são apenas… Enfim, não consegui imaginar mais nada para mim.
Silêncio.
— Olaf?
— Parece que estamos nas mesmas circunstâncias, à partida — resmungou. — .No fim de contas, poderei vir-me embora em qualquer ocasião, se verificar que…
— Pára com isso! — interrompi-o, impaciente. — Não há nada que discutir. Faz uma mala e vem. Quando podes chegar?
— Amanhã de manhã. Queres realmente jogar boxe?
— E tu não queres?
Riu-se.
— Sim, com os diabos! E pela mesma razão que tu.
— Então está combinado — disse, muito depressa. — Fico à tua espera. Cuida de ti.
Fui para o quarto. Procurei entre algumas coisas que metera numa mala e encontrei a corda. Um grande rolo. Cordas para um ringue. Quatro postes, um bocado de borracha ou molas e estaríamos feitos. Não haveria árbitro. Não precisaríamos.
Depois sentei-me para ler. Mas parecia que tinha a cabeça cheia de cimento. Já tivera a mesma sensação no passado, mas nunca com tanta intensidade. Em duas horas peguei em 20 livros e não consegui concentrar a atenção em nada durante mais de cinco minutos. Pus de parte até os contos de fadas. Decidi, no entanto, não estar com contemplações. Peguei no que me pareceu a coisa mais difícil, uma monografia sobre a análise de metagenes, e atirei-me às primeiras equações como se me atirasse, de cabeça baixa, a uma parede de pedra.
No entanto, a matemática tinha certas propriedades benéficas, particularmente para mim, pois ao fim de uma hora compreendi subitamente, fiquei boquiaberto e cheio de respeito. Como conseguira aquele Ferret fazer aquilo? Mesmo agora, retrocedendo pelo caminho que ele abriu, havia momentos em que me perdia. Passo a passo ainda me aguentava, mas aquele homem devia ter feito tudo num salto.
Teria dado todas as estrelas para ter na minha cabeça, durante um mês, qualquer coisa parecida com o conteúdo da sua.
Tocou o sinal para o jantar e ao mesmo tempo senti uma volta nas tripas, a lembrar-me de que não estava sozinho. Durante um segundo considerei a ideia de comer no quarto. Mas a vergonha venceu-me. Atirei para debaixo da cama a horrível camisa apertada que me dava o aspecto de um macaco inflado, vesti a minha impagável camisola velha, solta, e fui para a sala de jantar. Tirando a troca de algumas delicadezas banais, houve silêncio. A conversa esteve ausente. Eles não precisavam de palavras. Comunicavam por olhares. Ela falava com ele com a cabeça, as pestanas e o leve sorriso. Lentamente, começou a crescer dentro de mim um peso frio e senti os braços famintos, desejosos de agarrar qualquer coisa, apertar, esmagar. Porque era tão selvagem? — perguntei-me com desespero. Porque seria que em vez de pensar no livro de Perret, nas questões levantadas por Starck e em vez de tratar dos meus próprios assuntos tinha de lutar comigo mesmo para não sorrir àquela rapariga como um lobo?
Mas só me senti assustado quando me fechei no quarto, no andar de cima. Na Adaptação tinham-me dito, depois dos testes, que era completamente normal. O Dr. Juffon confirmara-o. Mas uma pessoa normal poderia sentir o que eu sentia naquele momento? De onde vinha aquilo? Eu não era um participante: era uma testemunha. Estava a realizar-se qualquer coisa, qualquer coisa irreversível como o movimento de um planeta, uma emergência gradual e quase imperceptível, ainda sem forma. Fui à janela, olhei para o jardim às escuras e apercebi-me de que, o que quer que era, devia estar em mim desde o almoço, desde o primeiro momento. Nem sequer precisara de um certo período de tempo. Por isso eu fora à cidade, por isso esquecera as vozes no escuro.
Era capaz de fazer fosse o que fosse por aquela rapariga. Não compreendia, porém, o como nem o porquê do que me acontecia. Não sabia se era amor ou loucura. Isso não importava. Só sabia que tudo o mais perdera a importância para mim. E lutei contra isso, de pé junto da janela aberta, como nunca lutara contra coisa alguma. Comprimi a testa contra o vidro frio e tive medo de mim mesmo.
«Tenho de fazer qualquer coisa», pensei. «Tenho de fazer qualquer coisa. Isto acontece porque algo está errado em mim. Passará. Ela não pode significar nada para mim. Não a conheço. Nem sequer é especialmente bonita. Mas pelo menos não farei nada. Não farei…», supliquei a mim próprio. «Pelo menos não cometerei nenhuma… Não, por Deus!»
Acendi a luz. Olaf. Olaf salvar-me-ia. Contar-lhe-ia tudo. Ele tomaria conta de mim. Iríamos para qualquer lado. Eu faria o que ele me dissesse, tudo o que ele me dissesse. Só ele compreenderia. Olaf chegaria no dia seguinte. Óptimo.
Andei de um lado para o outro. Sentia cada um dos meus mtisculos, era como se estivesse cheio de animais que se retesavam e lutavam uns com os outros. De súbito, ajoelhei-me junto da cama, mordi o cobertor e soltei um som estranho, um som seco e horrível, que não se parecia com um soluço. Eu não queria, eu não queria fazer mal a ninguém, mas sabia que era inútil mentir a mim mesmo, que Olaf me não poderia ajudar, nem ele nem ninguém.
Levantei-me. Durante 10 anos aprendera a tomar decisões repentinas, decisões de que dependiam vidas, a minha e as de outros, e fizera-o sempre do mesmo modo: friamente, com o cérebro transformado numa máquina feita para calcular os prós e os contras, para separar e solucionar, irrevogavelmente. Até Gimma, que não gostava de mim, reconhecia a minha imparcialidade. E agora, mesmo que quisesse, não poderia agir de modo diferente, mas só como então agira, numa situação extrema, porque esta também o era. Vi o meu rosto ao espelho. As íris pálidas, quase brancas, as pupilas apertadas. Olhei com ódio e afastei-me. Não podia pensar em ir para a cama. Tal qual como estava, passei as pernas por cima do parapeito da janela. Eram quatro metros até ao chão. Saltei e aterrei quase silenciosamente. Corri no mesmo silêncio na direcção da piscina, ultrapassei-a e cheguei à estrada. A superfície fosforescente levava para os montes, ziguezagueava entre eles como uma serpente reluzente, uma víbora, até desaparecer, cicatriz de luz nas sombras. Corri cada vez mais depressa, para cansar o coração que batia tão firmemente, tão fortemente. Corri durante cerca de uma hora até ver as luzes de algumas casas em frente. Regressara ao ponto de partida. Estava cansado, mas por essa razão mantive o mesmo passo, dizendo-me silenciosamente: «Anda! Anda! Anda!» Continuarei a correr e finalmente cheguei a uma fila dupla de sebes. Estava de novo defronte do jardim da vila.
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