Mário Sá-Carneiro
DISPERSÃO
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas aguas certas, eu hesito,
E detenho-me ás vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Afronta-me um desejo de fugir
Ao misterio que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não ha muitos que a saibam reflectir.
A minh’alma nostalgica de àlem,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir tambem.
Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no asul á busca da beleza.
É subir, é subir àlem dos ceus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de aureola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d’alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.
Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, agua nascente
E arco de ouro e chama distendido…
Asa longinqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ansia revolta de misterio e olor,
Sombra, vertigem, ascensão – Altura!
E eu dou-me todo neste fim de tarde
Á espira aerea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!…
Miragem rôxa de nimbado encanto —
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.
Sei a Distancia, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo rial e cruz…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O bando das quimeras longe assoma…
Que apoteose imensa pelos ceus!
A côr já não é côr – é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus…
* * * * *
Ao triunfo maior, àvante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois…
Paris – fevereiro de 1913.
Numa ansia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa.
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente á força de sonhar…
Mas a vitória fulva esvai-se logo…
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…
– Onde existo que não existo em mim?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um cemiterio falso sem ossadas,
Noites d’amor sem bôcas esmagadas —
Tudo outro espasmo que principio ou fim…
Paris 1913 – maio 3.
Numa incerta melodia
Toda a minh’alma se esconde.
Reminiscencias de Aonde
Perturbam-me em nostalgia…
Manhã d’armas! Manhã d’armas!
Romaria! Romaria!
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Princesas de fantasia
Desencantam-se das flores…
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as côres,
Vivo em roxo e morro em som…
Paris 1913 – maio 6.
Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepusclos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.
Batem asas d’aureola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de côr e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.
Respiro-me no ar que ao longe vem,
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