– Meu Deus, não entendeu?
– Claro, agora entendo. Está dizendo que teria gente que escovaria os dentes sempre que desse vontade.
– É isso aí, é por isso que nós…
– E, puxa vida, pode imaginar só? Dentes sendo escovados às seis e meia, seis e vinte… quem sabe?, talvez às seis horas. É, posso compreender o seu ponto de vista.
Ele dá uma piscadela por sobre o ombro do crioulo para mim, que estou de pé encostado na parede.
– Tenho de limpar esse rodapé, McMurphy.
– Ah. Não tinha a intenção de afastar você do seu trabalho. – Ele começa a recuar, afastando-se, enquanto o crioulo se inclina para recomeçar o trabalho. Então se aproxima novamente e se abaixa para olhar para dentro da lata ao lado do crioulo. – Bem, olhe só; que é que nós temos aqui?
O crioulo olha para baixo.
– Olhar para onde?
– Olhar aí dentro dessa lata velha, cara. Que negócio é esse aí dentro dessa lata velha?
– É… sabão em pó.
– Bem, eu geralmente uso pasta, mas – McMurphy mete a escova lá embaixo no pó, dá uma girada com ela, tira e bate na borda da lata – mas isso aqui serve muito bem pra mim. Obrigado. Vamos tratar daquele negócio de norma da enfermaria depois.
E torna a dirigir-se ao banheiro, onde posso ouvir a sua cantoria adulterada pelo compasso da escova nos dentes.
O crioulo fica de pé ali, olhando para onde ele foi, com o trapo de esfregar pendendo frouxo na mão cinzenta. Depois de um minuto, ele pisca, olha em volta e vê que eu o estava observando, aproxima-se e me arrasta pelo corredor abaixo, puxando-me pelos cordões do pijama, e me empurra para um lugar no chão, que ontem mesmo eu limpei.
– Aí! Seu maldito, fica aí! É aí que eu quero que você fique trabalhando, não olhando em volta estupidamente como uma vacona inútil qualquer! Aí! Aí!
Eu me abaixo e começo a esfregar de costas para ele, de forma que não me veja a sorrir. Eu me sinto bem por ver que McMurphy apanhou de jeito aquele crioulo, como poucos homens teriam conseguido. Papai costumava ser capaz de fazer isso – as pernas separadas, o rosto inexpressivo, olhando para cima, para o céu, naquela primeira vez em que os homens do Governo apareceram para negociar a conclusão do tratado. "Gansos do Canadá lá em cima", diz papai, olhando de soslaio para cima. Os homens do Governo olham, folheando papéis. "Em que mês é que estamos? Em julho? Não há… hum… gansos nessa época do ano. Hum, não há gansos."
Eles estavam falando como turistas do leste que acham que têm de falar com índios de maneira que eles compreendam. Papai parecia não tomar conhecimento da maneira como eles falavam. Continuava olhando para o céu. "São gansos, lá em cima, homem branco. Você sabe. Gansos neste ano. E no ano passado. E no ano anterior e no ano anterior."
Os homens se entreolharam e pigarrearam. "Sim. Pode ser verdade, chefe Bromden. Agora, esqueça os gansos. Preste atenção ao contrato. O que nós oferecemos poderia beneficiar grandemente os… a sua gente… modificar a vida dos peles-vermelhas."
Papai disse:… "e no ano anterior e no ano anterior e no ano anterior"…
Quando os homens do Governo se deram conta de que estavam sendo feitos de idiotas, todo o conselho que permanecera sentado na varanda da nossa cabana, enfiando os cachimbos nos bolsos das camisas de lã xadrez, vermelha e branca e tornando a tirá-los e sorrindo uns para os outros e para papai – todos eles já haviam estourado no maior acesso de riso, rindo de morrer. Tio C & S Lobo rolava no chão, arquejando às gargalhadas e repetindo: "Você sabe disso, homem branco."
Aquilo realmente os aborreceu; viraram-se sem dizer uma palavra e saíram em direção à estrada, vermelhos de raiva, e nós rindo nas costas deles. Eu me esqueço, às vezes, do que o riso pode fazer.
A chave da Chefona gira na fechadura, e o crioulo está a seu lado tão logo ela passa pela porta, pulando em um pé e outro como uma criança pedindo para fazer pipi. Estou perto o bastante para ouvir o nome de McMurphy ser mencionado na conversa dele umas duas vezes, de forma que sei que ele lhe está contando a respeito da história de McMurphy escovar os dentes, esquecendo-se por completo de lhe falar sobre o velho Vegetal que morreu durante a noite. Abanando os braços e tentando dizer a ela o que aquele ruivo idiota já esteve aprontando de manhã tão cedo – atrapalhando as coisas, contrariando a norma da enfermaria… será que ela não pode fazer alguma coisa?
Ela olha fixa e penetrantemente para o crioulo até que ele pára de se remexer. Dirige então o olhar para o corredor, por onde a cantoria de McMurphy ressoa através da porta do banheiro, mais alta do que nunca. "Oh, seus pais não gostam de mim, dizem que sou pobre demais, que não sou digno nem de passar por sua porta."
De início o rosto dela fica perplexo; como o resto de nós, já faz tanto tempo que ela não ouve alguém cantar que leva um momento para tomar pé da situação.
"A vida difícil é o meu prazer, o meu dinheiro é só meeeu, e se eles não gostam de mim, podem me deixar em paz."
Ela escuta por mais um minuto para se assegurar de que não está ouvindo coisas; então começa a inchar. As narinas se abrem de estalo, e cada vez que respira ela fica maior, tão grande e com aspecto tão mau como não a vejo ficar por causa de um paciente desde a época em que Taber estava aqui. Ela põe em funcionamento as dobradiças dos cotovelos e dos dedos. Ouço um pequeno guinchado. Começa a mover-se, e eu recuo de encontro à parede e, quando ela passa ribombando, já está grande como um caminhão, arrastando aquela cesta de vime como um trailer atrás de um caminhão. Os lábios dela estão separados e o seu sorriso segue na frente dela como a grade de um radiador. Posso sentir o cheiro do óleo quente e a fagulha do radiador quando ela passa, e a cada passo que bate no chão ela se infla, ficando um ponto maior, inflando e inchando, esmagando o que quer que esteja no seu caminho! Estou com medo só de pensar o que ela irá fazer.
Então, no momento exato em que ela vai acelerando no seu maior e pior estado, McMurphy sai pela porta do banheiro, colocando-se bem na frente dela. toalha enrolada nos quadris. Ela pára de estalo! Ela encolhe até mais ou menos a altura da cabeça até o ponto onde aquela toalha o cobre, e ele lhe está sorrindo. Até o sorriso dela está abalado, treme nos cantos.
– Bom dia, Srta. Rat-shed *! Como é que vão as coisas lá fora?
– Não pode ficar andando aqui… enrolado numa toalha!
– Não? – Ele olha para baixo, para a parte da toalha que ela está olhando. Nota que a toalha molhada está colada como uma pele. – Toalhas também são contra as normas da enfermaria? Bem, acho que não há mais nada a fazer sen…
– Pare! Não ouse. Volte já para o dormitório e vista as suas roupas imediatamente.
Ela fala como uma professora ao repreender um aluno. Assim, McMurphy baixa a cabeça como um aluno, e diz numa voz que soa como se ele estivesse a ponto de chorar:
– Eu não posso fazer isso, dona. Acho que algum ladrão afanou as minhas roupas, durante a noite, enquanto eu dormia. Eu durmo um sono muito pesado nesses colchões que vocês têm por aqui.
– Alguém afanou?…
– Lalou. Passou a mão. Deu sumiço. Roubou – diz ele satisfeito. – Sabe, dona, parece que alguém afanou meus trapos. – Dizer aquilo o excita tanto que começa a executar um pequeno balé, descalço diante dela.
– Roubou suas roupas?
– Parece que foi isso mesmo.
– Mas… uniforme de presidiário? Por quê?
Ele pára de saltitar e torna a baixar a cabeça.
__Tudo que sei é que elas estavam lá quando eu fui para a cama e tinham sumido quando me levantei. Sumiram como num passe de mágica. Oh, eu sei que não eram nada além de um ordinário uniforme de presidiário, desbotadas e grosseiras, dona, bem que sei disso… e um uniforme de presidiário pode não parecer muita coisa para aqueles que têm mais . Mas para um homem nu…
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