Eles reclamaram-no. Sobretudo aquele burro do Luca. Mandei-o para casa, acrescentando que, se o visse outra vez a brincar aos caudilhos, o atirava para a Stinche como rebelde.
1 A prisão de Florença
E depois?
Não te ponhas com esse ar de juiz presidindo a um tribunal, Fiora! Estás a irritar-me! Lembrei a minha interdição de tocar em qualquer sepultura, seja ela qual for. E, para o provar, disse que Pazzi seria enterrado secretamente onde eu achasse que devia ser enterrado... E agora vou mandar levá-lo para um quarto.
Para que os teus criados saibam que mentiste? Rica ideia! Não podias, também, pensar na tua mãe e na tua mulher?
Nem uma nem outra estão cá. Mandei-as para a villa di Castello assim que o bom tempo regressou, para que possam encontrar paz e sossego. Quanto aos meus criados...
Esquece-os! Ou antes, diz àqueles em quem mais confias que preparem uma liteira que feche bem e que reunam uma escolta comandada por Savaglio. Vou levar Carlo para minha casa, para Fiesole. Ninguém o tratará tão bem como Demétrios.
Queres partir esta noite? Isso é uma loucura! O povo vai fazer perguntas ao ver uma liteira tão bem guardada!
Não fará perguntas nenhumas pela simples razão de que, aqui, ninguém ignora que eu sou a tua favorita do momento. Ninguém se mostrará surpreendido por tu mostrares alguma solicitude.
Ele reflectiu por uns momentos e depois, aproximando-se da jovem, tomou-a nos braços sem parecer aperceber-se da sua ligeira resistência e escondeu-lhe o rosto no pescoço:
Então, façamos melhor ainda! murmurou ele. Savaglio fica aqui e eu próprio te escoltarei.
Queres?...
Por que não? Já que toda a gente está ao corrente, não há razão para não agirmos à luz do dia. Arrisco-me apenas, ao longo do caminho, a receber algumas piadas lascivas sobre os prazeres que vou ter à noite. Não, não digas nada! Lembra-te da minha carta: não quero ficar sem ti mais uma noite...
Ora, nessa noite, Fiora não reencontrou a felicidade indolente que conhecera durante as últimas semanas. Talvez porque não se sentisse verdadeiramente livre. No quarto vizinho, vazio até àquela noite, Carlo repousava, profundamente adormecido graças à droga administrada por Demétrios para lhe acalmar as dores. O jovem sofria, de várias costelas partidas, sem contar com as diversas esfoladelas no rosto e no couro cabeludo. Mas a sua presença no outro lado da parede incomodava Fiora e nem toda a arte amorosa de Lourenço foi capaz de a descontrair...
Após se saciar uma primeira vez, este apercebeu-se e após algumas tentativas para acordar naquele belo corpo um ardor igual ao seu, acabou por se deixar cair no leito, os olhos fixos no dossel cujas cortinas brancas os envolviam com uma luminosidade rosada provocada pela vela.
Devias ter-me dito a verdade - suspirou ele. Já não me amas?
Eu nunca te disse que te amava murmurou Fiora. Tu também não, aliás...
Estou a prová-lo, parece-me?
Não. Estás a provar o teu desejo, o teu coração não é para aí chamado.
Mas estou cheio de ciúmes e, há pouco, teria estrangulado aquele infeliz.
E isso será mesmo ciúme? Tu sabes que ele não fez nada e que nunca poderia haver nada entre nós. Não será antes por ele ser um Pazzi?
Talvez... se bem que ele me inspire, antes de mais, piedade. Mas tu, Fiora, que te diz o teu coração acerca de mim?
Honestamente, não sei. Eu gosto do amor que tu me dás e o meu corpo excita-se quando tu te aproximas...
Esta noite não, em todo o caso!
Concordo... mas não me queiras mal por isso: o dia foi difícil.
Além disso, não suportas a ideia de uma presença no outro lado da parede?
Também. Sinto um incómodo bizarro... como se fôssemos verdadeiramente casados.
De repente, a jovem ouviu-o rir-se:
Se é só isso!
Saltando do leito, ele enfiou os calções e as botas, enrolou Fiora num lençol, atirou-lhe para cima com algumas almofadas apesar dos seus protestos e depois, agarrando no todo saiu do quarto, desceu as escadas, atravessou o vestíbulo e desatou a correr através do jardim ainda molhado da última chuvada até à pequena gruta onde Francesco Beltrami gostava de se refugiar durante os dias quentes de Verão. Uma tina e uma bica com cabeça de leão ocupavam o centro e a canção da água acalmava o espírito muitas vezes acabrunhado do grande negociante.
Lourenço pousou Fiora no chão, espalhou as almofadas e deixou-se cair em cima delas com a jovem, que desenrolara, entretanto, do lençol, como se fora um pião:
Pronto! declarou ele alegremente. Acabaram-se os vizinhos incómodos! Doravante amar-nos-emos aqui.
Fiora não pôde resistir. Arrebatada por uma sarabanda louca de carícias, deixou que a sua necessidade de amor e a sua juventude levassem a melhor.
No dia seguinte, através da magia do Magnífico, a pequena gruta, vestida com grandes lírios de água, de cetins irisados, de cristais glaucos e com um tapete sedoso que lembrava erva azul, assemelhava-se aos retiros encantados dos contos orientais. O amor experimentou ali um sabor novo porque se libertava dos constrangimentos impostos pela grande villa e dava aos dois amantes a impressão deliciosa de estarem sós no coração do primeiro jardim do mundo.
Uma noite em que, após se terem banhado e feito amor na tina e enquanto Lourenço enxugava com um cuidado devoto o corpo de Fiora, esta, que molhava os lábios numa taça de vinho de Chipre, suspirou, estendendo-a ao amante:
Tenho vergonha de mim própria, Lourenço... Nunca conseguirei arrancar-me a ti...
Espero bem que não. E por que razão nos havíamos de separar?
Esqueces que tenho um filho, que não o vejo há meses... e que tenho saudades dele.
Eu mando-o vir em breve. Sabes, eu penso muito em nós e não me faltam projectos. Até dei ordens para que reparem, para ti, o antigo palácio Grazzini. Viverás lá com o teu filho e os teus criados sob o nome de Selongey. Não... não digas nada! Farei do teu filho um dos primeiros homens de Florença. Será rico, poderoso e nada o impedirá, chegada a ocasião, de ir servir com as suas armas o soberano que quiser escolher... Quanto a nós, ficaremos juntos, minha flor preciosa, e poderei continuar a rodear-te de cuidados... e de amor.
De amor?
Claro. Se o que nos une não é isso, parece-se terrivelmente. Florença vai viver dias sombrios, Fiora. Eu vou precisar, mais do que nunca, das horas incomparáveis que tu me dás. Quanto a ti, desempenharás, no coração dos meus súbditos, o papel que pertencia a Simonetta, porque a sua natureza profunda é atraída pela beleza perfeita. A eles, parece-lhes que Florença não pode brilhar se não estiver encarnada numa mulher deslumbrante... Não te preocupes com nada! Deixa-me agir! Juntos, ganharemos a batalha contra este Papa indigno, que quer o nosso extermínio.
Sisto IV abrira as hostilidades. Uma breve, datada de 1 de Junho de 1478, excomungava ao mesmo tempo Lourenço, ”filho da iniquidade”, cujo maior defeito, aos seus olhos, era estar ainda vivo e os priores da Senhoria, ”possuídos de sugestão diabólica e dominados, como cães, por uma raiva delirante”, por terem ousado enforcar um arcebispo nas suas janelas.
Lourenço recebeu a notícia sem pestanejar. As cóleras de um Papa indigno não o interessavam. Contentou-se a reenviar para Siena, sob uma boa escolta, o jovem cardeal Rafaele Riario que, após o assassínio cometido na catedral, vivia num estado de estupor profundo. O que não acalmou, de modo nenhum, o pontífice ulcerado. Os Florentinos receberam ordem de entregar Lourenço de Médicis a um tribunal eclesiástico, diante do qual ele responderia pelos seus crimes. Uma ordem que não teve sucesso. O povo recusou todo e qualquer convite à revolta: não aceitava nenhuma ordem do Papa de carácter temporal. E fechou-se de corpo e alma em redor do príncipe a quem se entregara, partilhando o desgosto que lhe causava a morte do irmão, aquele Giuliano em quem todos os Florentinos viam a imagem acabada do encanto e arte de viver da sua cidade.
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