Aldous Huxley - A Ilha

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A ilha, 1962, é uma obra-prima do talento profético de Huxley, um dos maiores escritores do Séc. XX. Vindo de um mundo dominado pela violência, totalitarismo e massificação, o cético jornalista Will Farnaby descobre Pala, uma ilha paradisíaca na Indonésia. Ali floresce uma sociedade auto-suficiente que, baseada no perfeito equilíbrio entre a ciência e espiritualismo, valoriza a liberdade e a realização plena das potencialidades de seus habitantes. No entanto, a cobiça dos países vizinhos — que desejam explorar as riquezas naturais do lugar — condena Pala ao desaparecimento.

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Aldous Huxley

A Ilha

Para Laura

Quando se traça um ideal, pode-se vislumbrar o que se pretende, mas é preciso evitar o impossível.

Aristóteles

CAPÍTULO I

— Atenção! — uma voz começou a chamar, e foi como se alguém inesperadamente começasse a tocar um oboé. — Atenção! — repetiu no mesmo tom nasal e monótono. — Atenção!

Deitado como um cadáver sobre as folhas secas, o cabelo em desalinho, o rosto grotescamente sujo e pisado, a roupa enlameada e em farrapos, Will Farnaby acordou sobressaltado. Molly o chamara. Estava na hora de levantar-se e vestir-se. Não podia chegar atrasado ao escritório.

— Obrigado, querida — disse, sentando-se. Uma dor aguda trespassou-lhe o joelho direito. As costas, os braços e a fronte também estavam doídos.

— Atenção! — insistia a voz, no mesmo tom. Apoiando-se num dos cotovelos, Will olhou em redor e viu com espanto não as cortinas amarelas e o papel cinza das paredes do seu quarto em Londres, mas as luzes e as longas sombras da madrugada incidindo sobre uma clareira entre as árvores.

— Atenção!

— Por que isso?

— Atenção! Atenção! — insistia a voz de modo estranho e sem sentido.

— Molly? — perguntou ele. — Molly?

O nome agiu como um clarão em seu cérebro. Subitamente, e já com aquela sensação de angústia que lhe era tão familiar, seguiu pelo corredor verde, que cheirava a formol, a pequena e viva enfermeira cujas roupas estalavam de tão engomadas.

— Número cinqüenta e cinco — disse ela, abrindo uma porta branca. Ele entrou. Lá estava Molly numa cama alta e branca, com a metade do rosto envolta em ataduras e a boca como se fosse uma caverna.

— Molly! — chamou. — Molly…

Sua voz enfraqueceu e, chorando, implorou:

— Minha querida! — Não obteve resposta. Através da boca entreaberta, a respiração vinha em rápidos e ruidosos estertores, uma vez, outra vez…

— Minha querida…

A mão que segurava entre as suas adquiriu alguma vida, e momentos depois ficou imóvel.

— Sou eu, Will — disse.

Uma vez mais os dedos se moveram devagar e, com enorme esforço, fecharam-se sobre os seus, apertaram-nos por instantes e depois voltaram à imobilidade.

— Atenção! — chamou aquela voz desumana. — Atenção!

Procurava convencer-se de que fora um acidente. O carro derrapara na estrada molhada. Uma dessas coisas que sempre acontecem e que lemos nos jornais a toda hora. Ele mesmo as noticiara, às dúzias: Mãe e três filhos mortos num acidente… Mas isso não vinha ao caso. A questão era que, quando ela lhe perguntara se tinha realmente chegado ao fim, respondera afirmativamente. A verdade era que há menos de uma hora, sob a chuva, tinham terminado aquela última e vergonhosa entrevista. Agora Molly estava morrendo na ambulância.

Não a olhara quando ela se virou para partir; não tivera coragem. Outro olhar àquele rosto pálido e sofredor poderia ter sido demais. Ela se levantou da cadeira e, atravessando lentamente o quarto, saiu de sua vida. Não deveria chamá-la e pedir-lhe perdão, dizendo-lhe que ainda a amava? Amara-a algum dia?

Pela centésima vez ouviu o som parecido com o oboé:

— Atenção!

Amara-a realmente?

— Adeus, Will — dissera naquele murmúrio tão conhecido, voltando-lhe as costas no limiar da porta. — Apesar de tudo, Will, ainda o amo — sussurrou.

Um momento depois, a porta do apartamento se fechara atrás dela, quase sem ruído. Ouviu apenas o estalido seco da fechadura. Ela se fora. Pulara da cadeira e correra para abrir a porta da frente. Escutara seus passos se afastarem à medida que descia as escadas. Como um fantasma da madrugada, um perfume vagamente familiar pairava no ar. Fechando novamente a porta, entrou em seu quarto cinza e amarelo e foi encostar-se à janela.

Passados alguns segundos, viu-a atravessar a calçada e entrar no carro. Ouviu o ranger estridente do arranque, uma, duas vezes, e, depois, o ruído do motor em funcionamento. Deveria abrir a janela?

— Espere, Molly, espere — imaginou estar dizendo.

Mas a janela continuou fechada. O carro começou a se movimentar, dobrou a esquina e a rua ficou vazia.

— Tarde demais. Tarde demais, graças a Deus! — dissera uma voz grosseira e vulgar. Sim, graças a Deus!

Ainda assim, o seu sentimento de culpa estava ali, na boca do estômago. O sentimento de culpa! O tormento do remorso! Juntamente com esses sentimentos sentia uma indescritível alegria. Alguém baixo, lascivo, brutal, odioso, o estranho que era ele mesmo, se rejubilava pelo fato de não haver mais nada que o impedisse de ter o que quisesse. E tudo o que desejava era um perfume diferente, o calor e a elasticidade de um corpo mais jovem.

— Atenção! — repetiu o oboé.

Sim, devia prestar atenção. Atenção para o quarto de Babs, com sua alcova rosa-morango, com suas duas janelas que deixavam entrever durante toda a noite o trêmulo cintilar do grande anúncio luminoso do Gin Porter, colocado do outro lado da rua Charing Cross. A palavra GIN brilhava em vermelho vivo. Durante dez segundos a alcova era o próprio Sagrado Coração. Nesses dez milagrosos segundos, o rosto avermelhado, tão próximo ao seu, brilhava como o de um serafim transfigurado que tivesse sido iluminado pela chama do amor. E, na pausa escura que se sucedia, essa transfiguração era ainda mais evidente.

— Um, dois, três, quatro… Deus permita que isto continue para sempre!

Mas, quando chegar ao número dez, o controle elétrico trará outra revelação — uma revelação de morte e de horror! As luzes serão verdes e por dez horríveis segundos a encarnada alcova de Babs se transformará num ventre de lama. Na cama, ela terá a cor de um cadáver, um cadáver galvanizado que tem epilepsia póstuma. Quando o Gin Porter era apregoado em verde tornava-se difícil esquecer tudo o que acontecera e tudo o que se era. O único recurso consistia em fechar os olhos e mergulhar, se possível, ainda mais profundamente no Outro Mundo. Mergulhar violenta e deliberadamente no mundo da sensualidade. Era poder entregar-se aos loucos frenesis aos quais a pobre Molly (Molly — Atenção! — nas suas ataduras, Molly na sua úmida cova em Highgate; por causa disso tinha de fechar os olhos, cada vez que a luz verde transformava num cadáver a nudez de Babs) tinha sido sempre uma estranha. Não apenas Molly.

Com os olhos semicerrados, Will viu sua mãe, pálida como um camafeu, a face espiritualizada pela aceitação do sofrimento e com as mãos monstruosamente deformadas pela artrite. De pé, atrás da cadeira de rodas de sua mãe, já começando a engordar e tremendo como geléia de mocotó, estava sua irmã — a pobre Maud —, cujos sentimentos nunca haviam encontrado meios de evasão na consumação do amor.

— Como foi que você pôde, Will?

— Sim. Como você pôde fazer isso? — ecoou Maud, chorosa, na sua vibrante voz de contralto.

Não havia resposta. Teria de explicar-lhes tudo, escolhendo cuidadosamente palavras que pudessem ser proferidas na presença de ambas. Palavras que pudessem ser compreendidas por essas duas criaturas que se tornaram mártires — a mãe devido ao seu casamento infeliz, e a irmã pela piedade filial. Só conseguiria explicar-se usando expressões cheias da mais científica obscenidade e ditas com uma franqueza de todo inadmissível.

Como pudera fazê-lo? Bem, fora impelido a isso porque… além de Babs ter certas particularidades físicas que Molly não possuía, era capaz, em certos momentos, de atitudes que Molly nunca poderia conceber.

Houve um longo silêncio, abruptamente interrompido pela estranha voz que recomeçara o seu refrão:

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