O barulho de britadeira já havia parado naquela altura, e todo mundo olhava para nós ali na porta. McMurphy atraía os olhares como um apresentador de variedades. Ao lado dele, descobri que era obrigado a ser olhado também e, com as pessoas olhando fixo para mim, senti que tinha de ficar de pé tão ereto e alto quanto pudesse. Aquilo fez com que minhas costas doessem onde eu havia caído no chuveiro com o crioulo agarrado em mim, mas não cedi. Um sujeito de aparência faminta com a cabeça coberta por uma cabeleira negra toda alvoroçada aproximou-se e estendeu a mão como se imaginasse que eu tinha alguma coisa para lhe dar. Tentei ignorá-lo, mas ele ficou andando sempre a minha volta, para onde quer que eu me virasse, como um garotinho, estendendo aquela mão aberta para mim.
McMurphy falou um pouco sobre a briga, e minhas costas começaram a doer cada vez mais; eu me havia encolhido ha minha cadeira no canto durante tanto tempo que era difícil ficar de pé ereto sem sofrer as conseqüências.
Fiquei satisfeito quando uma enfermeirinha japonesa veio para nos levar até a Sala das Enfermeiras e tive uma oportunidade de me sentar e descansar.
Ela perguntou se já estávamos suficientemente calmos para que nos tirasse as algemas e McMurphy assentiu. Ele se afundou na cadeira, com a cabeça caída e os cotovelos entre os joelhos e parecia completamente exausto – não me havia ocorrido que ficar ereto fosse tão difícil para ele quanto para mim.
A enfermeira – mais ou menos tão grande como a menor extremidade de nada apontada numa ponta fina, como McMurphy a descreveu mais tarde – soltou nossas algemas, deu um cigarro a McMurphy e um tablete de chiclete a mim. Disse que se lembrava de que eu mascava chicletes. Não me lembrava absolutamente dela. McMurphy fumou, enquanto ela enfiava a mãozinha cheia de velas de aniversário cor-de-rosa num vidro de ungüento, e cuidava das feridas dele, encolhendo-se quando ele se encolhia e dizendo-lhe que sentia muito. Ela tomou uma de suas mãos nas dela e passou ungüento nas juntas dos dedos.
– Foi Washington ou Warren? McMurphy olhou para ela.
– Washington – disse ele e sorriu. – O chefe aqui tomou conta de Warren.
Ela soltou a mão dele e virou-se para mim. Eu podia ver os ossinhos pequenos de passarinho no rosto dela.
– Está ferido em algum lugar? – Sacudi a cabeça.
– E Warren e Washington?
McMurphy disse que achava que possivelmente estariam exibindo algum gesso da próxima vez que os visse. Ela concordou com a cabeça e olhou para os pés.
– Nem tudo é como a enfermaria dela – disse. – Grande parte é, mas não tudo. Enfermeiras do Exército tentando dirigir um hospital do Exército. Elas mesmas são um pouco doentes. Às vezes acho que todas as enfermeiras solteiras deveriam ser despedidas depois de 35 anos.
– Pelo menos todas as enfermeiras solteiras do Exército - acrescentou McMurphy. Ele perguntou por quanto tempo poderíamos esperar ter o prazer da hospitalidade dela.
– Temo que não por muito tempo.
– Teme que não por muito tempo? – perguntou-lhe McMurphy.
– Sim. Às vezes eu gostaria de manter os homens aqui em vez de mandá-los de volta, mas ela é mais antiga. Não, provavelmente vocês não vão ficar muito tempo… quero dizer… não como estão, agora.
As camas na Enfermaria dos Perturbados são todas incômodas, duras demais ou moles demais. Designaram-nos para camas vizinhas. Não me amarraram com um lençol, embora deixassem uma luzinha fraca acesa perto da cama. No meio da noite alguém gritou:
– Estou começando a girar, índio! Olhe para mim, olhe para mim! – Abri os olhos e vi uma dentadura de longos dentes amarelos cintilando bem na frente do meu rosto. Era o cara de aparência faminta. – Estou começando a girar! Por favor, olhe para mim!
Dois ajudantes o apanharam pelas costas, arrastaram-no, rindo e gritando, para fora do dormitório. – Estou começando a girar, índio! – então apenas o riso. Ele continuou dizendo aquilo e rindo por todo o caminho, corredor abaixo, até que o dormitório ficou em silêncio, e pude ouvir aquele outro que dizia: "bem… lavo as minhas mãos quanto a todo esse negócio".
– Por um segundo você arranjou um amigo ali, chefe – cochichou McMurphy e se virou para o outro lado para dormir.
Não consegui dormir muito durante o resto da noite e ficava vendo aqueles dentes amarelos e aquele rosto faminto daquele cara, pedindo: Olhe para mim! Olhe para mim! Ou, finalmente, quando acabei dormindo, apenas pedindo. Aquele rosto, apenas uma necessidade amarela e faminta, vir aparecendo gradualmente, saída da escuridão, diante de mim, querendo coisas… pedindo coisas. Eu me perguntei como McMurphy podia dormir perseguido por uma centena de rostos como aquele, ou duas centenas, ou um milhar deles.
Eles têm um despertador, lá em cima, na Enfermaria dos Perturbados, para acordar os pacientes. Eles não acendem simplesmente as luzes, como lá embaixo. O despertador toca como um apontador gigante a mostrar alguma coisa horrível. McMurphy e eu nos sentamos de um salto só, quando o ouvimos, e estávamos a ponto de nos deitar novamente quando um alto-falante nos chamou, pedindo que nos apresentássemos na Sala das Enfermeiras. Saí da cama e minhas costas se tinham enrijecido a tal ponto durante a noite que eu mal me podia inclinar; eu sabia, pela maneira como McMurphy se movia, que ele estava tão doído quanto eu.
– Qual é o programa deles para nós agora, chefe? – perguntou. – Pontapés? A roda? Espero que nada de muito extenuante, porque, cara, estou realmente quebrado!
Eu lhe disse que não era nada de extenuante, mas não lhe afirmei mais nada, porque não tinha certeza até que chegamos à Sala das Enfermeiras, e a enfermeira, uma outra diferente, disse:
– Sr. McMurphy e Sr. Bromden? – então nos entregou, a cada um, um copinho de papel.
Olhei para o meu, e havia três daqueles comprimidos vermelhos.
Esse zing zumbe na minha cabeça e não consigo parar com ele.
– Espere aí – diz McMurphy. – Essas são aquelas pílulas de fazer a gente apagar, não são?
A enfermeira concorda com um movimento da cabeça, volta-se para verificar o que há atrás dela; são dois sujeitos esperando com apanhadores de gelo inclinados para a frente de braço dado.
McMurphy devolve o copinho e diz:
– Nada disso, dona, dispenso a escuridão. Agora um cigarro caía bem.
Devolvo o meu também e ela diz que tem de telefonar e desliza para trás da porta de vidro e já está ao telefone antes que alguém possa dizer alguma coisa mais.
– Sinto muito- se o meti em maus lençóis, chefe – diz McMurphy, e eu mal posso ouvi-lo com o barulho do telefone tilintando dentro das paredes. Posso sentir o apavorado torvelinho de pensamentos na minha cabeça.
Estamos sentados, aqueles rostos em volta de nós, num círculo, quando a Chefona, em pessoa, entra porta adentro, os dois crioulos, um de cada lado, um passo mais para trás. Tento me afundar na cadeira, me afastar dela, mas é tarde. Há gente demais olhando para mim; olhos grudentos me prendem onde estou sentado.
– Bom dia – diz ela, agora recuperou o seu velho sorriso. McMurphy diz bom dia, e eu continuo calado, embora ela também me diga bom dia, em voz alta. Estou observando os crioulos; um tem esparadrapo no nariz e o braço numa tipóia, a mão cinzenta projetando-se para fora das ataduras como uma aranha, e o outro se mexe como se tivesse alguma espécie de molde em torno das costelas. Ambos estão rindo, os dentes à mostra. Provavelmente poderiam ter ficado em casa, machucados como estão, mas não perderiam isso por nada. Eu lhes retribuo o sorriso, só para lhes mostrar.
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